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Opinião

O difícil relacionamento entre civis e militares

O difícil relacionamento entre civis e militares

Artigo por RED
10/02/2023 04:55 • Atualizado em 12/02/2023 20:00
O difícil relacionamento entre civis e militares

De NUBIA SILVEIRA*

“Povo unido jamais será vencido”, “Não passarão”, “Ditadura, nunca mais”. Quem nunca ouviu ou gritou estas e outras frases em manifestações políticas? Emocionamo-nos ao escutá-las ou berrá-las, em alto e bom som, em meio a centenas, milhares de manifestantes, que dividem conosco a utopia de um novo mundo. Vemos a vida com otimismo, certos de que seremos vitoriosos. Mas a realidade algumas (muitas?) vezes é diferente. Ela não é completa como sonhávamos e esperávamos. No Brasil e em certos países latino-americanos as conquistas costumam vir com uma sombra fardada. Perigo previsto por Platão em República, sua obra mais importante: os militares são capazes “de alargar a sua perigosa influência a toda área da política”. Daí o receio dos civis.

A relação entre civis e militares brasileiros – nos mostra a História – nunca foi serena. Os armados sempre se viram como herdeiros do quarto Poder, o de moderador, exercido pelo imperador até 1889, quando, num golpe, o Marechal Deodoro da Fonseca declarou a República e exilou para sempre o seu amigo Dom Pedro II. Desde lá os brasileiros vivem o medo de que a quartelada se repita. E ela se repetiu algumas vezes, apesar de os militares serem “servidores públicos comuns e não agentes políticos”, como afirma o procurador Airton Florentino de Barros, em artigo publicado no Conjur -Consultor Jurídico, em 6 de julho de 2020. “A razão é simples. Político armado não governa. Torna reféns os cidadãos.”

Diversos acadêmicos alertam que para termos uma democracia consolidada é preciso que as Forças Armadas estejam sob o controle do poder civil. No Brasil, esta situação deveria ter ficado clara, quando, em 1985, houve a transição da ditadura para a democracia. No entanto, o maranhense José Sarney, tornado presidente, devido à doença e posterior falecimento do mineiro Tancredo Neves, não teve coragem para colocar um fim nesta sombra verde-oliva.

Jorge Zaverucha, cientista político, autor de Relações Civil-Militares no Primeiro Governo da Transição Brasileira – Uma Democracia Tutelada, diz que, “diante dos altos riscos subjacentes ao processo de transição” são previstas três situações:

1 – a transição é concluída quando “os civis conseguem controlar, democraticamente, o comportamento político dos militares”, que passam a obedecer aos comandos civis. E são abolidos “os enclaves autoritários dentro do aparelho de Estado”. Algo que o Brasil ainda não conseguiu,

2 – a transição falha totalmente quando militares ou civis derrotam os que buscam implantar a democracia, ferindo de morte as instituições democráticas como fez Getúlio Vargas em 1937, num autogolpe com a ajuda das Forças Armadas, que, em 1964, tomaram o poder, após golpear o presidente João Goulart,

3 – a transição não se completa, mas também não é um fracasso. Neste caso, os militares seguem tendo “áreas autônomas de poder político”. O poder civil passa a medir, continuamente, a reação dos militares às suas decisões. Esta é a chamada democracia tutelada, em que as Forças Armadas ainda intimidam os civis e prejudicam a consolidação de democracia.

Zaverucha afirma que o Brasil vive uma democracia tutelada, porque o ex- presidente nem tentou controlar os militares. No seu governo houve uma “relação simbiótica, onde Sarney e os militares se beneficiaram de uma cooperação não democrática”. O cientista político cita em seu artigo 39 momentos históricos em que o primeiro presidente da redemocratização acomodou-se à autonomia política dos militares, mesmo contra o interesse de civis. Ele lembra, entre outros fatos, a primeira crise militar, ocorrida em 12 de agosto de 1985. A então deputada federal Bete Mendes fazia parte da comitiva presidencial, em visita ao Uruguai. Ao chegar à embaixada brasileira em Montevidéu se viu frente a frente com o seu torturador, coronel Carlos Brilhante Ustra, sempre elogiado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele era o adido militar da embaixada brasileira.

Indignada, ao voltar ao Brasil, Bete enviou uma carta de protesto a Sarney, pedindo a exoneração de seu torturador, e fez um discurso no Congresso denunciando a situação, totalmente inconcebível e inaceitável. A reação do Exército foi rápida. O general Leônidas Pires Gonçalves, comandante da Força, divulgou uma nota, afirmando que Ustra, o torturador, não só permaneceria no posto como contava com a total confiança de seus superiores. “Além disso, Leônidas aproveitou para enaltecer aqueles que patrioticamente arriscaram suas vidas na luta contra os subversivos”, entre os quais se encontravam responsáveis por torturas, mortes e desaparecimentos. Infelizmente, eles também foram incluídos na anistia ampla, geral e irrestrita, sancionada em 28 de agosto de 1979. Neste episódio como em outros, Sarney cedeu às pressões do Exército. Os governos seguintes seguiram na mesma linha de Sarney, num jogo constante entre o Executivo e as Forças Armadas, geralmente vitoriosas em suas posições.

O moçambicano Emílio Jovando Zeca, doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, no artigo Relações Civis Militares na CPLP: desafios e perspectivas analisa este relacionamento na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Zeca alerta que “constitucionalmente, o princípio da subordinação dos militares ao poder político instituído existe, mas na prática, há um conjunto de desafios para a sua materialização”. O procurador Airton Florentino de Barros confirma a afirmação de Zeca: a Constituição de 1988 veda a filiação partidária de militares (quem quiser fazer política, como disse recentemente o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deve ir para a reserva), proíbe que sejam sindicalizados e façam greve. Às Forças Armadas cabe “enfrentar a guerra com Estado inimigo, impedir ou repelir invasão do território nacional por forças estrangeiras e garantir internamente a ordem pública, seja, nos primeiros casos, para proteger a soberania do país, seja, no último, para assegurar a integridade dos três poderes constitucionais”. Barros salienta: “nenhuma das medidas destinadas ao cumprimento de tais funções pode ser adotada pelos militares  sem a prévia requisição dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, em conjunto ou isoladamente, conforme o caso”. Ou seja, como diz Zeca, a nossa Constituição deixa claro a submissão dos militares ao poder civil.

O moçambicano mostra-se mais otimista do que Zaverucha. Ele acredita que a partir de 1988, com a nova Carta, até 2018, quando o ex-capitão Bolsonaro foi eleito presidente, o Brasil separou a profissão militar da atividade política, deixando no passado questões como “Doutrina de Segurança Nacional, Serviço Nacional de Informações, censura aos meios de comunicação, controle social, repressão sistemática, tortura contra críticos ao regime, assassinatos e exílios sistemáticos dos dissidentes”. O avanço das relações ocorreu com a aprovação da Política de Defesa, Estratégia de Defesa e Livro Branco de Defesa.

Marcha à ré

Apesar de a nossa Carta Magna reconhecer a existência de apenas três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, os militares brasileiros aferram-se ao artigo 142 que, segundo eles, lhes concede o poder moderador, esquecendo que não podem tomar qualquer atitude, sem que sejam convocados a agir por um dos três poderes. As Forças Armadas são instituições de Estado e não um poder, como desejam. Nem podem se constituir num Partido Militar.

Em plena democracia, assistimos ao retrocesso da democracia, com politização do Exército, Marinha e Aeronáutica, promovida por Bolsonaro, que lotou o Planalto e os ministérios com militares, ocupando cargos de civis, algo nunca visto desde a redemocratização. Olhando para trás fica claro que o ex-presidente, derrotado por Lula, em 2022, é produto de um projeto nascido no Clube Militar, em que se reúnem os militares da reserva, que viveram ou nasceram na ditadura, odeiam qualquer proposta progressista e desejam voltar ao poder.

Durante seus quatro anos no Planalto, o “mito” incitou seus seguidores civis e militares a darem o golpe, se ele não fosse reeleito. Isto era claro para todos além da bolha bolsonarista de extrema direita. O ex-presidente, autoexilado nos Estados Unidos, tem como um dos seus ídolos e orientadores (além de Ustra, claro), o general Villas Bôas, gaúcho de Cruz Alta, um dos mais ativos no Twitter com críticas ao estado democrático de  direito. Ele criou o Instituto que leva o seu nome, com a missão de “elaborar e apoiar estratégias de interesse nacional nos campos do desenvolvimento econômico e social, civismo e cultura, segurança e defesa do Brasil, para o progresso e qualidade de vida do cidadão”.

Em parceria com os Institutos Sagres e Federalista, o Instituto Villas Bôas elaborou o Projeto de Nação, com propostas para o País até 2035, divulgado em 19 de maio de 2022. Com este projeto, o recado do Exército foi de que teríamos um país militarizado, no mínimo, por mais 13 anos. O documento contém teses polêmicas: cobrança de mensalidades nas universidades públicas, privatização do SUS, exploração da Amazônia.

Suzeley Kalil Mathias, professora da Unesp, especialista em Forças Armadas e Segurança Internacional, acredita que a divulgação do projeto atropelou o Brasil e o povo brasileiro. Para a professora, os militares escancararam seu desejo “de participarem do processo político brasileiro sem terem sido chamados a isso”. Na entrevista ao PodCast da Universidade Estadual Paulista Suzeley foi além: “Eles se colocam contra a Constituição. As Forças Armadas não representam a nação, mas insistem em querer se apresentar como poder tutelar. É impressionante a falta de empatia desses militares com a sociedade brasileira.”

Suzeley enganou-se apenas ao pensar que a totalidade dos brasileiros defende a democracia. Infelizmente, metade do país aprova as propostas autoritárias deste grupo ligado a Bolsonaro. As mensagens nas redes sociais e os artigos escritos por eles, em especial da Revista do Clube Militar, incentivaram a radicalização e o discurso de ódio.

O retrocesso democrático vivido pelo Brasil ficou claro para o mundo. Surgiu – extraoficialmente – o Partido Militar. As forças de segurança civil e militar, federal e estadual, foram quase que totalmente contaminadas pela cartilha do presidente. Não havia mais diálogo ou jogo entre o poder civil e as Forças Armadas, como ocorreu no período da democracia tutelada. Os militares tinham voz e poder para decidir e atacar abertamente os outros poderes, tendo na mira o STF – Supremo Tribunal Federal e o TSE – Tribunal Superior Eleitoral. Portanto, o surgimento dos protestos de eleitores de extrema direita logo após ser divulgado o resultado da eleição presidencial já era esperado. O que não se previu foi a intensidade do ódio, a falta de civilização dos protestantes e a agressividade com que recebiam jornalistas, adversários e até policiais.

Os radicais de direita, tremendamente organizados, buscaram ajuda em frente aos QGs do Exército. Viveram mais de dois meses, rezando ajoelhados, cantando hinos, gritando por um golpe. Calado, o derrotado encorajava-os a tomar o poder com as próprias mãos. Foi o que tentaram no dia 8 de janeiro. É certo que voltarão a atacar, com o apoio de militares e a orientação do norte-americano, ex-assessor de Donald Trump, Steve Bannon, amigo dos filhos de Bolsonaro.

Democracia plena, após 38 anos?

Lula agiu rápido para combater os destruidores, punir os que deveriam defender os Poderes e não o fizeram e deixar claro que o comandante das Forças Armadas é o presidente. Com apenas pouco mais de um mês de governo, Lula retomou a transição entre autoritarismo militar e democracia. Com vontade política para, desta vez, 38 anos depois da redemocratização, controlar o comportamento político dos militares.

Em 12 de outubro de 1977, sentindo que se preparava um golpe contra ele, o general-presidente Ernesto Geisel, exonerou o ministro do Exército Sylvio Frota. Decidiu fazer isso no feriado de Nossa Senhora Aparecida em que Frota teria dificuldade para reagir. Bolsonaro não corria qualquer risco, mas exonerou no dia 30 de março de 2021, de uma só tacada os comandantes do Exército, Edson Pujol, da Marinha, Ilques Barbosa, e da Aeronáutica, Antônio Carlos Bermudes. Já havia dispensado o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva. O ministro e os comandantes resistiam à politização das Forças. As demissões foi a desforra do presidente.

Estes dois fatos, em momentos nos quais a democracia não existia ou estava em perigo, ajudaram Lula em sua decisão de trocar o ministro do Exército general Júlio César Arruda, no sábado, 21 de janeiro, pelo general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, então comandante militar do Sudeste. A razão de Lula foi a necessidade de ter no comando da Arma um militar em que possa confiar e despolitizar o Exército, instituição de Estado.

A missão não será fácil. A agência Pública divulgou textos da Revista do Clube Militar em apoio aos protestos que clamavam/clamam por um golpe militar. “O grito dos insatisfeitos com os acontecimentos hoje no Brasil, no sentido de uma quebra institucional, pode até parecer ilegal, mas é justo e justificado”, afirma o presidente do Conselho Editorial do Instituto Villas Bôas, general Marco Aurélio Costa Vieira. Coordenador do Projeto de Nação, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva escreveu o texto intitulado Vocês merecem admiração, respeito, acolhimento e esperança, no qual afirma que as manifestações ocorridas em frente aos QGs eram “legais, legítimas, pacíficas, espontâneas e plenas de espírito cívico e patriótico”. O general Paiva, que se refere aos radicais de extrema direita como “nossos irmãos da Primavera Brasileira” também anunciou: “Haverá uma série de movimentos legais, legítimos e ordeiros, mas permanentes e afirmativos, que tornarão o governo inviável”. Ou seja, a extrema direita bolsonarista se prepara para mais protestos violentos, que minam energias e recursos do governo Lula.

É certo que as relações civis-militares seguirão tensas e precisará ainda de algum tempo para que a democracia brasileira se consolide. Os ataques de 8 de janeiro por pouco não resultaram num golpe, apoiado pela divisão entre constitucionalistas e golpistas existente nas Forças Armadas, principalmente no Exército, e nas polícias civis e militares. Professor de Filosofia na UFRGS, Denis Lerrer Rosenfield publicou na edição de 30 de janeiro, no O Estado de S.Paulo, o artigo Os militares e a democracia, em que garante: “Se golpe não houve, isso se deve, entre outros, a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo”. São eles: general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, atual comandante do Exército, general Valério Stumpf, chefe do Estado Maior do Exército, e general Richard Fernandez Nunes, comandante do Comando Militar do Nordeste.

Se eu estivesse, por um milagre, no lugar de Lula ficaria de olho nos golpistas da ativa e, em particular, da reserva, como os generais Augusto Heleno, Braga Neto, Eduardo Villas Bôas, Luiz Eduardo Rocha Paiva e Marco Aurélio Costa Vieira, entre outros. Ficaria muito atento às ações do Clube Militar e às redes sociais da extrema direita. No dia 9 de janeiro já se encontravam nas redes novos vídeos de radicais furiosos, chamando para outro ataque aos três Poderes.

Poucos países conseguiram resolver as relações entre civis e militares. A jornalista Rosa Freire D’Aguiar, que acompanhou a política espanhola após a morte do ditador Francisco Franco, em 1975, até a eleição do socialista Felipe González, em 1982, conta no artigo Militares, poder, ditaduras: longe da tentação, publicado em 18 de janeiro, no site da RED – Rede Estação Democracia, como o governo conseguiu afastar a tentação golpista dos militares. Diz Rosa que o ministro da Defesa de González, “economista Narcis Serra, promoveu uma profunda reforma militar que, em poucos anos, afastou de vez a tentação golpista dos militares”.

A reforma militar espanhola, segundo a jornalista, teve três eixos principais: enterrou definitivamente a noção de inimigo interno, revisou o ensino militar e removeu das chefias os militares franquistas. Este terceiro item deve ter sido o mais difícil. Afinal, Franco esteve no poder por 40 anos, dez vezes mais do que Bolsonaro.

Fica aí uma sugestão para o presidente Lula e seu ministro da Defesa, José Múcio Monteiro Filho. Resta saber se Múcio é a pessoa certa para promover uma reforma a la espanhola e pacificar o relacionamento entre civis e militares no Brasil.


*Jornalista, trabalhou em jornal, TV e assessoria de imprensa, em Porto Alegre, Brasília e Florianópolis. Foi repórter, editora e secretária de redação. É coordenadora do programa Espaço Plural da RED – Rede Estação Democracia.

Texto originalmente publicado na revista virtual Parêntese, do grupo Matinal.

Foto: José Cruz/Agência Brasil.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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