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O desafio francês e a questão do estado

O desafio francês e a questão do estado

Artigo por RED
17/07/2024 12:21 • Atualizado em 17/07/2024 12:25
O desafio francês e a questão do estado

Por J. Carlos de Assis*

A) Semipresidencialismo!

Os filósofos políticos da Antiguidade e do início da Era Moderna eram revolucionários idealistas. A começar por Platão. Ele não se conformava com os sistemas de governo prevalecentes, nos quais via graves ameaças à cidadania grega. A tirania, por si mesma, era uma negação da cidadania; a timocracia ou oligarquia, governo dos ricos, interessava exclusivamente aos poderosos. Mas também a democracia, o governo dos cidadãos, tinha defeitos e riscos. Podia cair nas mãos de demagogos irresponsáveis.

A solução proposta por Platão era o governo dos sábios. Tentou duas vezes, a convite de Dion de Siracusa, sobrinho do tirano Dionisio. Das duas vezes saiu expulso de lá. Sua ideia era muito boa, mas inviável. Era impraticável substituir tirania, timocracia e democracia por governo dos sábios. Alguém tinha que nomear os sábios, e nos três sistemas quem nomeasse ou indicasse os sábios, ou tivesse influência direta na nomeação deles, por seu poder econômico ou político, seria o que exerceria o poder de fato. Ou seja, a estrutura desses sistemas não mudaria.

A Idade Moderna reinventou a democracia grega, com um escopo inicialmente limitado. De fato, a palavra democracia não significa poder do povo, como muitos imaginam, mas poder dos demos, proprietários de glebas, conforme estavam divididas as terras na Ática clássica. Os filósofos políticos modernos estenderam a cidadania aos proprietários em geral, os burgueses. A História encarregou-se de estendê-la a não proprietários, mulheres, pobres, negros, imigrantes e, no Brasil, até jovens de 16 anos.

Entretanto, o dilema de Platão não ficou resolvido. Quanto mais larga se faz a cidadania, maiores os riscos de o poder democrático cair nas mãos de um paranoico com dons demagógicos. Esta, para os brasileiros, não é uma divagação inócua, vazia de conteúdo. Sabemos o que significou a eleição democrática de Bolsonaro em 2019. Os alemães souberam o que foi a vitória eleitoral do partido nazista nas eleições dos anos 30, sob as admiráveis balizas democráticas da República de Weimar.

Essas reflexões me vieram à mente ao escrever, ainda em 2008, “A crise da Globalização”, quando tentei examinar algumas consequências de uma das maiores crises econômicas da história. Dediquei um capítulo ao que poderia ser, hoje, o dilema de Platão: como evitar que, na era nuclear, o poder de desencadear uma guerra atômica destrutiva do mundo caísse nas mãos de um demagogo? Depois me dei conta de que não era apenas a questão da guerra. Outros aspectos da política atual também estão em jogo.

O centro da questão é a funcionalidade do Estado contemporâneo. Há questões, além de guerra e paz, que transcendem o tempo ou os tempos de um governante. Por exemplo: Relações Internacionais e de Defesa, a questão ambiental e energética, o desenvolvimento científico-tecnológico, a questão genética, a questão dos Direitos Humanos. Nos termos de Platão, esses temas deveriam ser entregues a um governo de sábios. Como conciliar isso com a democracia de cidadania ampliada?

Recuar para um sistema não democrático seria impensável. Portanto, podemos buscar, idealmente (como Platão), uma síntese em nível superior. Há questões que podem ser tratadas no tempo próprio de um governante, e que não se traduzem em riscos irreparáveis para o futuro. Erros, omissões ou mesmo corrupção governamental, voluntários ou não, podem ser revertidos pelo processo normal de alternância do poder, próprio da democracia. Entretanto, demagogia pode ser o preço a pagar por isso.

O Estado democrático funcional dividiria, pois, funções do Estado, prerrogativas do Presidente com mandato longo, de funções do Governo, prerrogativas de um Primeiro-Ministro nomeado por ele, de mandato mais curto. O Presidente teria um Conselho de especialistas (sábios), recrutados no mundo civil, para orientar as decisões de longo prazo do sistema estatal. O Primeiro-Ministro, que nas condições brasileiras de um sistema político extremamente fragmentado dificulta a formação de coalizões partidárias majoritárias, sem fisiologia, teria liberdade de recrutar para seu Ministério também integrantes do mundo civil. Parlamentares que eventualmente fossem recrutados para o
Ministério deveriam renunciar a seus mandatos.

O sistema democrático de cidadania ampliada seria integralmente respeitado. A vontade do povo se expressaria na eleição em dois turnos de um Presidente, e do Parlamento de forma clássica e proporcional. Os partidos políticos se fortaleceriam na busca de alianças propositivas, e não apenas pelo exercício da demagogia. E os riscos de eleição de um demagogo a que fossem incumbidas funções de interesse vital, não só para o país, mas para a Humanidade, seriam grandemente minimizados, na medida da elevação do próprio nível da campanha presidencial.

Claro que não há nem nunca haverá sistemas políticos perfeitos. Estou falando de um padrão ocidental que deve ser aperfeiçoado. Os orientais têm outras tradições, outros costumes e outra história política. É esdrúxula a pretensão ocidental, sobretudo norte-americana, de impor um sistema que se pretende universal, mas que elegeu Hitler, Donald Trump e um Jair Bolsonaro. E que, portanto, está longe da perfeição. Na marcha da história,
entretanto, é possível antever uma síntese virtuosa no futuro.

Iniciei este artigo evocando um livro meu escrito em 2008. É proposital. Gostaria de que as ideias aqui apresentadas não fossem confundidas com o golpismo implícito nas sugestões do tal regime semipresidencialista posto em discussão recentemente na Câmara.

Não quero um Presidente sem poderes, mas um Estado funcional, onde o Presidente tem reforçados seus poderes diretos, através de um Conselho nomeado por ele, e indiretos, através do Primeiro-Ministro também nomeado por ele, mas aprovado pelo Congresso Nacional.

Ao Ministério caberiam sobretudo os assuntos de Economia e de Administração Pública, divididos em áreas funcionais: Planejamento e Orçamento; Fazenda, Banco Central, Emprego e Renda; Indústria, Comércio, Serviços; Desenvolvimento Regional; Desenvolvimento Social (Previdência, Saúde, Saneamento Básico); Cultura etc. Um Ministério organizado dessa forma, assim como o Conselho mais restrito do Presidente, possibilitariam reuniões funcionais com o Primeiro-Ministro e o Presidente, com eficiência institucional máxima do Estado.

Os Ministérios do Planejamento e Orçamento; da Fazenda; do Emprego e Renda, junto com o Banco Central, definiriam os parâmetros da expansão monetária, do investimento público, da liquidez desejada da economia e da busca do pleno emprego. Esta última exprimiria o objetivo central da política econômica do Estado social-desenvolvimentista, em contraposição às formulações liberais e neoliberais que pretendem deixar às chamadas livres forças do mercado as flutuações do emprego, geradoras de grande insegurança social.

B) Superpresidencialismo

Em tempos de internet, ler mais de cinco linhas de um artigo parece demais. Muitos ficam no título. Por isso errei ao dar o título de “Semipresidencialismo” ao artigo que escrevi sobre sistema de governo. Pessoas que não o leram por inteiro, ou que o leram e não entenderam o que proponho, acham que defendo a proposta com que o presidente da Câmara, Arthur Lira, quer prolongar o bolsonarismo para além de Bolsonaro, ou amarrar o futuro presidente progressista, se vier a ser Lula, numa algema da extrema direita.

Estou propondo um superpresidencialismo funcional, não um semipresidencialismo caótico, como já é o presidencialismo num país que tem quase 40 partidos políticos, mais de 20 deles representados no Parlamento. O presidencialismo que temos praticado em 130 anos de República é marcado pela instabilidade, a corrupção e a ineficácia econômica. Quando se avançou no desenvolvimento material, nas eras de Getúlio e de Geisel, estivemos sob ditaduras que esmagaram os direitos individuais.

Levantei um debate que mergulhou imediatamente nos estereótipos maniqueístas que tornam as pessoas prisioneiras de conceitos polares congelados no tempo. Quando se fala em presidencialismo ou parlamentarismo, as pessoas imaginam logo os sistemas clássicos que prevalecem nos Estados Unidos e na Europa. Seriam imutáveis, infensos a qualquer evolução. Seriam bons ou maus. Teriam valores intrínsecos, não estariam ou não deveriam estar sujeitos à dialética histórica.

É claro que muita gente de experiência muita maior em política prática do que eu, tem convicções presidencialistas profundas, ancoradas na experiência histórica e no conhecimento íntimo do funcionamento dos sucessivos parlamentos brasileiros, em especial dos mais recentes. É o caso de Roberto Requião. Na minha opinião, é o mais preparado estadista brasileiro. Costumo chamá-lo de o maior entre nossos grandes nacionalistas. Mas também ele não entendeu a minha proposta.

Em primeiro lugar, creio que nosso sistema político tem que evoluir. E tem que evoluir porque fracassou em 130 anos de República. Nesse longo período, como Élio Gaspari costuma mostrar com um toque de humor, raríssimas vezes um presidente eleito passou a faixa presidencial para outro presidente eleito. Nos intervalos, crises políticas e econômicas, militarismo e golpes. Outra razão por que tem que evoluir é que, em qualquer sistema político, os donos do poder ou querem mantê-lo, ou querem puxá-lo para traz.

É a eterna luta entre conservadores e progressistas. E ela só se define, para um lado ou para outro, em momentos de crise profunda. Suponho que, nessa altura, de 2014 para cá, ninguém duvida que a sociedade brasileira está mergulhada na mais dramática crise de sua história. Todas as suas instituições falharam ou continuam falhando. Executivo, Legislativo, Judiciário, Promotoria Pública, Política, todas tiveram seu momento de perda total de credibilidade perante a opinião pública. Felizmente algumas, como o STF e parte do Congresso, se regeneraram.

Se não fosse pelo recente despertar da Justiça para reparar o mais criminoso erro judiciário da história do país, a condenação de Lula, e caso não houvesse a casualidade de uma pandemia universal e a forma incompetente, fraudulenta e homicida como o governo Bolsonaro a enfrentou, seriam extremamente nebulosas as perspectivas para 2022. Foi o renascimento de Lula como candidato presidencial viável que tornou realista a expectativa
de alternância do poder em favor dos progressistas.

Isso porque, na estrutura política absolutamente caótica do Brasil, nem diante de uma crise histórica sem paralelo, as forças progressistas se entendem em torno de propostas políticas e de nomes consensuais de candidatos. Brigam e se agridem entre si, mais do que procuram convergências programáticas e consensos. Por isso, divididas, se expõem a derrotas. E a direita e extrema direita, juntam com o Centrão, unidos pelo pragmatismo, vencem pela combinação do poder econômico com a incompetência do adversário.

É em face disso que estou propondo uma reforma do Estado e um sistema de Governo democrático renovado. Estou entrando no vácuo aberto pela proposta indecente do semipresidencicalismo para apontar um caminho de evolução progressista. Ela prescinde de reforma constitucional ou de plebiscito. Basta a vontade do presidente da República, que, creio, venha a ser um progressista, pois ele pode, por decreto, se assessorar com um Conselho para questões de Estado, e nomear um Primeiro-Ministro, aprovado pelo Congresso, para comandar questões de Governo.

Sou um economista político, não um filósofo político. Mas acho que, em crises profundas, todos nós que pensamos no futuro do país e nos tornamos filósofos. Como economista, minha preocupação central é a recuperação econômica e a retomada do desenvolvimento acelerado do país. Temos um grupo que está trabalhando nisso. Como filósofo político, tenho que pensar em termos de finanças funcionais para a nova economia, e em termos de Estado funcional para a sociedade. Isso porque o país é ingovernável com a estrutura de Estado e de governo que está aí.

Como analogia, minha simpatia é com o sistema francês, cujo defeito, a meu ver, é a eventualidade da chamada coabitação entre um presidente eleito por um partido, e um primeiro-ministro escolhido numa coalizão partidária adversária. Isso se resolve, porém, com a nomeação do primeiro-ministro pelo próprio Presidente da República, conforme proponho, e aprovado pelo Congresso Nacional, como no Peru. E esse primeiro-ministro, costurando no cipoal dos inúmeros partidos políticos brasileiros, monta o resto do Ministério de coalizão, com a anuência do Presidente.

Isso não é semipresidencialismo, nem parlamentarismo clássico. É superpresidencialismo. Deve ser complementado por uma estrutura ministerial funcional, conforme expus em meu artigo. Nela, as funções econômicas principais devem ser uma atribuição conjunta de quatro ministérios ou entidades de status ministerial –Planejamento, Fazenda, Banco Central, e Trabalho e Renda -, cujo objetivo fundamental é coordenar a política econômica rumo ao pleno emprego e ao maior crescimento possível da renda nacional.

Na forma, a função do Primeiro Ministério seria parecida com a atualmente exercida pela Casa Civil. No conteúdo, seria inteiramente diferente. A Casa Civil atual é a cara do Chefe de Estado e do Governo: quando ele é honesto, a Casa Civil é um centro de articulação, coordenação e controle do governo. Quando é desonesto, é o instrumento central da fisiologia estatal, da compra de parlamentares com propósitos políticos fraudulentos, e do jogo eleitoreiro. O modelo que proponho, se não elimina, pelo menos reduz essas características do presidencialismo degenerado. Finalmente, é remota a possibilidade de o governo Bolsonaro, mergulhado em corrupção e acossado pelas evidências de que perderá a reeleição, tente tirar a máscara do ódio aos progressistas, que apresentou no início, e busque algum expediente político que corrija as distorções de sua administração. Seu fracasso é irrecorrível, e, com seus limitados recursos programáticos, jamais poderá fazer um governo funcional. O que veio para fazer está fazendo com Guedes, em sentido contrário. E Guedes é só um instrumento de  estruição do Estado e do Governo.

*Economista, autor de mais de 20 livros sobre economia política.

Foto de capa: Equilíbrio. Pinterest.

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