Opinião
Nota sobre o uso perverso do modelo centro-periferia
Nota sobre o uso perverso do modelo centro-periferia
De LUIZ ROBERTO PECOITS TARGA*
Logo depois de encerrada a II Guerra Mundial, o paradigma Centro-periferia foi criado para constituir um marco geral para a análise das relações entre os países da periferia capitalista e o centro do capitalismo mundial (economias dos EEUU, Europa e Japão). Ele foi criado pelo pesquisador argentino Raúl Prebisch e constituiu-se em moldura para a busca de explicações e de soluções para as relações econômicas de dominação entre o Centro do capitalismo e as economias, então chamadas, subdesenvolvidas. Era o caso das economias latino-americanas e foi a partir desta realidade que foi inicialmente estudada a questão. Essencialmente porque a existência desta relação perpetuava a subordinação e eternizava o subdesenvolvimento nesta periferia do capitalismo. Os estudos visavam romper com a subordinação e promover o desenvolvimento destas economias periféricas.
As análises feitas a partir do modelo Centro-periferia foram a criação mais poderosa da escola da CEPAL (Comissão Económica para América Latina e Caribe), órgão da ONU sediado no Chile, onde atuaram também Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares e José Serra (o Serra dos bons tempos: antes de virar a casaca).
A CEPAL foi proposta nos quadros da ONU, e sofreu sempre a oposição decidida dos USA. No início, muitos acreditavam que ela não sobreviveria, mas a participação de Prebisch parece ter sido decisiva para a sobrevivência da Instituição e para a afirmação do seu caráter profundamente inovador. Entre 1948 e 1949, Raúl Prebisch produziu, como consultor da CEPAL, dois textos fundadores (aterrorizantes e escandalosos para seus interlocutores), apresentados em duas conferências da CEPAL, uma em Havana e outra em Montevidéu. Nestes textos ele afirmava a teoria da industrialização pela substituição de importações e apresentava a questão da deterioração dos preços de intercâmbio. Dessa forma, já em maio de 1949, em Nova York, Prebisch foi nomeado Secretário Executivo da CEPAL.
A vitória em Montevidéu deu à CEPAL e a Prebisch uma visibilidade única. Washington se opôs sempre, tentando dissolver a Comissão nos quadros da ONU e apropriar-se dela nos quadros da OEA (1951). Furtado estava certo de que “qualquer transação – conferências conjuntas, coordenação dos trabalhos – conduziria à perda da autonomia [que tinham], à descaracterização da CEPAL” (Furtado, 1985, p. 113). A atitude do então presidente Getúlio Vargas de apoiar a Instituição fez com que os norte-americanos recuassem (para evitar uma polarização com os países latino-americanos?).
Vargas iniciava seu segundo governo, desta vez eleito, com o desejo de imprimir um caráter industrializante à política econômica e sabia que não contaria com o apoio das nações industrializadas neste caminho, pois vinha de uma rica experiência nesta questão: as enormes dificuldades e obstáculos externos à criação da Cia. Siderúrgica Nacional. Vargas percebeu o clima das novas ideias que brotavam na América Latina e não se isolou. Dessa forma, apoiou a autonomia da CEPAL, frustrando pela segunda vez a tentativa norte-americana de encerrar suas atividades.
Já diverso foi o uso deste paradigma fundador pelo economista da UNICAMP, Professor Wilson Cano. Ele usou o modelo para explicar a relação da economia paulista com a do ‘resto do Brasil’ de forma a justificar a dominação daquela sobre todas as regiões brasileiras (título dos livros: Raízes da concentração industrial em São Paulo, bem como Desequilíbrios regionais e concentração industrial em São Paulo). Este uso perverso, porque invertia o sentido original da criação do paradigma, possuiu um sucesso esplendoroso em muitas áreas de análise sócio econômica (economia, história, sociologia) e não somente em São Paulo, como em toda a dita ‘periferia’. Ele facilitou a explicação para o ‘fracasso’ das periferias, pois, aparentemente, tudo se esclarecera: São Paulo era o mais forte economicamente, o mais pujante, o mais rico, sempre fora uma vanguarda econômica e social, definitivamente era o mais avançado, e isso justificava tanto a sua importância, quanto a prevalência dos seus interesses (ou seja, os de suas classes dirigentes e dominantes) sobre os de qualquer outra região do País. Justificava a hegemonia, enfim, justificava a “exploração paulista”.
Mas Wilson Cano não foi o primeiro pesquisador paulista a tornar o seu estado o centro do País. Há muito tempo pesquisadores paulistas tinham esta visão da articulação hierárquica entre as economias e sociedades regionais brasileiras. Etnocentrismo paulista. Somente alguns exemplos: quando, em 1970, FHC estudou o escravismo meridional não percebeu sua especificidade, mas convenceu-se que era tão somente um caso deformado do escravismo das plantations paulistas. Ou seja, o modelo de excelência era o escravismo paulista, o do Sul era tão somente um caso imperfeito. Também as comparações que ele fez entre as campanhas abolicionistas republicanas nas duas regiões, segue privilegiando os personagens da história paulista, pois o radicalismo republicano meridional foi apresentado como inconsequente e politicamente irresponsável face ao realismo responsável dos republicanos paulistas. Mas a história era outra, assim: os republicanos gaúchos não eram escravistas, mas os paulistas sim (alguns clubes republicanos paulistas destruíam comitês abolicionistas). Desse modo, FHC estava redondamente enganado, ou se deixou enganar pelo vício etnocêntrico (paulista) subjacente.
Também alguns dos melhores textos, excelentes e fundadores da história econômica nacional foram escritos tomando a economia paulista pela nacional. Estão aí o magnífico O capitalismo tardio de João Manuel Cardoso de Melo, também o impressionante Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial de Fernando Novais e o definitivo A Revolução burguesa no Brasil de Florestan Fernandes. Era como se o Brasil se resumisse a São Paulo. Com isso, e não intencionalmente, estes textos negavam as histórias de outras regiões brasileiras, em outras palavras, negavam que outras regiões tivessem tido uma história. Desse modo, existia somente uma história do Brasil e ela era a de São Paulo. As outras seriam, tão somente, provincianas histórias regionais. É claro que isso ainda fazia parte de dois movimentos simultâneos: o da afirmação da existência do Brasil e o da afirmação nela, da hegemonia paulista.
Assim, o uso perverso do paradigma feito por Cano tinha o respaldo de um sentimento etnocêntrico disseminado na própria paisagem acadêmica paulista.
*Doutor em Economia, licenciado em História e autor do livro “Gaúchos e Paulistas na construção do Brasil Moderno”.
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
Toque novamente para sair.