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Não ao pacote das maldades !
Não ao pacote das maldades !
Por PAULO KLIASS*
O enredo já é bastante conhecido de todos nós. O governo apresenta um conjunto de medidas que afeta negativamente as condições de vida da grande maioria de nossa população. E o Palácio do Planalto monta uma tremenda operação abafa para conseguir sua aprovação no interior do legislativo. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, não estamos falando do mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC), de Michel Temer ou de Jair Bolsonaro. A referência aqui lembra mais o período em que Antonio Palocci ocupou a Ministério da Fazenda no primeiro mandato de Lula (2003 a 2005), assim como o tempo em que Joaquim Levy atuou como chefe da pasta no segundo mandato de Dilma (2015).
Vamos combinar que fazer oposição à política econômica de FHC, Temer ou Bolsonaro era mais fácil. Era só bater no Malan, no Meirelles e no Paulo Guedes e tudo estava resolvido. Ocorre que, a partir de 2003, a coisa ficou mais complexa. Afinal, o austericídio tem início justamente a partir de medidas de inspiração integralmente ortodoxa e conservadora encaminhadas pela dupla dinâmica composta por Antonio Palocci e Henrique Meirelles. Ou seja, eram os primeiros meses da primeira experiência do Partido dos Trabalhadores (PT) no poder federal. Além dos equívocos na condução da política monetária (SELIC na estratosfera) e fiscal (austeridade, superávit primário i otras cositas más), é importante lembrar que naquele momento o governo enviou também ao Congresso Nacional uma proposta de Reforma da Previdência carregada de perversidades, capaz de fazer inveja aos dirigentes políticos à frente do neoliberalismo.
Esse movimento deixou as forças progressistas em uma situação de desconforto e sem capacidade de iniciativa política. Afinal, ninguém poderia imaginar que viria das mãos do governo Lula propostas tão contraditórias com tudo aquilo que o PT sempre havia defendido ao longo de sua história. É bem verdade que durante a campanha eleitoral de 2002 foi divulgada a “Carta ao Povo Brasileiro”, onde Lula deixava a entender que adotaria um comportamento um pouco menos “radical” do que se poderia imaginar. De qualquer maneira, as propostas adotadas pelo governo caíram como uma verdadeira ducha de água fria sobre todos os que acreditávamos em uma mudança de fato na política econômica. A perplexidade inicial que acometeu também a maior parte dos parlamentares do PT e da base aliada foi aos poucos se transformando em conformismo e resignação. Um grupo optou por se distanciar de fato desta orientação e se reuniu em torno da alternativa do PSOL.
Lembremos de Palocci e Levy!
Mas o fato é que as medidas de austericídio terminaram por serem aceitas sem a resistência que se fazia necessária e o neoconservadorismo na política econômica em um governo de esquerda converteu-se em realidade também no Brasil. O fenômeno do assim chamado social-liberalismo que havia caracterizado a experiência desastrosa de governos “socialistas” na Europa ao longo das décadas de 1980 e 1990 pareceu ter atravessado o Atlântico e se instalou entre nós. Mais à frente, no início de seu segundo mandato, Dilma Roussef promove um impressionante estelionato eleitoral e convoca um representante do Bradesco para chefiar a área econômica de seu governo. Levy também apresenta um conjunto de medidas impopulares e baseadas em uma perspectiva de austeridade fiscal extremada. Mais uma vez o PT e a base aliada são pegos de surpresa e os representantes no Congresso Nacional também encontravam dificuldades para exercitar seu contorcionismo verbal e defender o indefensável.
Pois para quem achava que as duas experiências anteriores haviam funcionado como antídoto para tentativas futuras, eis que o Presidente Lula lança mão novamente do expediente de medidas impopulares e que vão contra a sua própria base política e eleitoral. De forma bastante polêmica, e até mesmo incompreensível, ele cede aos argumentos de Haddad e se compromete com um pacote de maldades na esfera dos cortes de despesas. O argumento refere-se à necessidade e cumprir as determinações do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), armadilha que foi apresentada a ele pelo Ministro da Fazenda ainda em 2023. Além disso, o clima catastrofista envolvendo a necessidade de passar a tesoura em rubricas de natureza social tem por base a verdadeira obsessão com que Haddad se agarra à sua meta de zerar o déficit fiscal primário.
Na apresentação que fez no horário nobre na TV no final de novembro, o professor do INSPER estabeleceu a estratégia de operar o conjunto das medidas em duas trilhas distintas. A primeira contém proposições que cortam gastos, quase todas afetando a imensa maioria dos muito pobres e miseráveis de nossa sociedade. Já a segunda trilha contempla a promessa de Lula de elevar a faixa de isenção de Imposto de Renda (IR) até R$ 5 mil. Junto com ela, foi apresentada a intenção de tributar aqueles que ganham mais de R$ 50 mil mensais. O detalhe da perversidade é que o corte de despesas já entraria em vigor a partir de 2025, ao passo que as medidas que poderiam contribuir para reduzir um pouco a enormidade da desigualdade social e econômica que nos caracteriza como sociedade ficaria para 2026 ou ainda mais tarde.
Corta, cortar e cortar. Sempre no lombo dos mais pobres.
O foco no corte de despesas segue a lógica do mantra da austeridade fiscal, mas se restringe exclusivamente à dimensão “primária” da abordagem a contas orçamentárias. Ou seja, as despesas de natureza financeira seguem deixadas à parte, sem teto, sem limite, sem contingenciamento. Todo esse esforço se concentra na busca quase desesperada de aproximadamente R$ 70 bilhões de saldo nas contas públicas em 2025. Assim, não há uma única menção aos R$ 870 bilhões que foram subtraídos dos recursos do Tesouro Nacional para cumprir o pagamento de juros da dívida pública ao longo dos últimos 12 meses. Além disso, Haddad segue fazendo ouvidos moucos à proposta de eliminar a isenção tributária para lucros e dividendos. Para tanto, bastaria uma simples Medida Provisória e os valores arrecadados com a alteração mais do que compensariam todas as tentativas de cortar gastos em setores de levada sensibilidade social. Ou ainda a edição de uma norma interna do Ministério da Fazenda determinando a incidência do Imposto de Exportações (tributo já existente) nas vendas externas de soja, minério de ferro e petróleo, por exemplo.
Mas não foi esse o caminho escolhido por Haddad. A opção foi por aprofundar a busca do equilíbrio fiscal primário por meio de medidas como: i) redução do direito ao mecanismo do abono salarial, que beneficia todos os trabalhadores com vencimento igual ou inferior a 2 salários mínimos; ii) redução do acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), que se destina aos mais miseráveis de nossa pirâmide da desigualdade; iii) redução nos índices de reajuste do salário mínimo, contrariando as reiteradas promessas de Lula ao longo dos últimos anos. Com exceção dos economistas a soldo do financismo, a grande maioria dos analistas e especialistas no assunto apontam para as consequências negativas da adoção de tais medidas. É o caso do excelente artigo de Miguel Bruno, Denise Gentil Lobato e Sérgio Lucena, que salienta:
(…) “Esses direitos sociais e trabalhistas são despesas obrigatórias que têm importante participação no orçamento […] Se para o governo são um custo a ser cortado, para a ampla maioria da população representam a própria sobrevivência.” (…)
O tempo passa e a mudança é urgente!
Um dos aspectos que mais chamam a atenção dos analistas refere-se à atitude passiva de Lula no quesito da austeridade fiscal. Desde o início de 2023 ele tem sido alertado para os riscos envolvidos a partir da adoção de tal estratégia sugerida por Haddad. Tais observações foram feitas quando da apresentação das primeiras versões do NAF e mesmo mais tarde, quando a meta de zerar o déficit primário surgiu no cardápio haddadiano. As propostas que o Congresso Nacional passa a analisar agora em dezembro, com a urgência da patrolagem articulada com as lideranças no Parlamento, contrariam na essência os interesses dos poucos setores que ainda oferecem apoio a Lula e ao governo.
Além de se caracterizarem como uma guinada à direita e em direção de um neoliberalismo mais raiz, aceitar a ideia de que os mais pobres devem ser responsabilizados, mais uma vez, pelo sacrifício da austeridade fiscal é um absurdo político e eleitoral. Esperamos que os dias de restabelecimento da cirurgia também sirvam ao Presidente para que ele se permita o exercício de uma necessária reflexão a respeito dos equívocos cometidos até o momento em termos de política econômica, em especial na política fiscal. Já estamos nos aproximando do fim da primeira metade do terceiro mandato. Mas apesar do tempo perdido, ainda há espaço para uma mudança nesta rota do conservadorismo proposto por Haddad. Caso contrário, o cenário para as eleições de 2026 pode vir a se tornar cada vez mais incerto.
*Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
Foto de capa: Reprodução
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