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Na cadência do progresso
Na cadência do progresso
POR CÁTIA CASTILHO SIMON*
O filme Saudosa Maloca lançado em 2024, com direção de Pedro Serrano, traz parte da trajetória pessoal e musical do sambista paulista Adoniran Barbosa, representado por Paulo Miklos, em meio a metrópole dos anos 50. Nele, o próprio compositor e cantor é quem conduz a narrativa. Suas vivências e músicas ganham vida e dão leveza ao enredo. A ideia de “pogréssio” toma corpo e volume, não há nada que possa impedi-la. Afinal, há um certo consenso quanto a substituição do velho pelo novo. Derrubam-se malocas para erguerem prédios, cobrem-se ruas com o asfalto para mostrar a evolução das cidades. É assim que a roda gira.
Um dado importante que não consta no filme, mas vale registrar é que Adoniran também foi vítima da censura. A música Tiro ao Álvaro foi censurada durante o AI5, por seu conteúdo de mau gosto – são circuladas as palavras fora do padrão da norma culta: ‘tauba’, ‘artomove’ e ‘revorve’. Somente depois de reescrita a letra, a música foi liberada e, posteriormente, gravada por Elis Regina, nos anos 80. A canção ficou conhecida exatamente por remeter ao lugar de fala das pessoas que viviam à margem da cultura e da sociedade e que tanto quanto qualquer outra mostravam-se sensíveis ao amor e suas flechadas. A submissão da escrita ao padrão culto é também para alguns indicador de desenvolvimento e ganho cultural. Assim pensavam os censores da época, mas não só eles, infelizmente.
Voltemos a questão do progresso, ideal que ocupa inclusive ao lado de ordem, o centro da bandeira brasileira. É preciso escovar a história a contrapelo, já nos ensinou o pensador Walter Benjamin. Quem se coloca contra o “pogréssio”, praticamente assina uma confissão de atraso, de ser obtuso. Por essas e outras propaga-se a ideia de que hoje ser empreendedor é andar para frente, evoluir. Os bancos, as financeiras e organizações suspeitas, aplaudem.
Acompanhamos, recentemente, diversos eventos decorrentes desse ideal arrasa quarteirões. As queimadas criminosas somadas as alterações climáticas decorrentes do uso irresponsável do solo e rios criaram um corredor de fumaça pelo Brasil, elevando drasticamente o nível de poluição do nosso ar. Houve superlotação de hospitais, prejuízo a saúde ainda não totalmente mensurável.
Adoniram e seus amigos, no filme referido, assistiram impotentes e convencidos que sim, as malocas deviam ceder lugar aos grandes prédios. O trecho musical: “Deus dá o frio, conforme o cobertor”, não poderia ser mais coerente com o conformismo da população. Muitos cidadãos e cidadãs da época e do presente momento entendem que árvores centenárias devem ceder lugar para o capim que alimentará o gado ou ao trigo, ao arroz, seja lá o que for para alimentar pessoas e bichos, pouco importa a ordem dos fatores, desde que se reverta em lucro e cifras. O que vale mesmo é o “pogréssio”. Bancos, financeiras e demais seguem aplaudindo. O Brasil em chamas, acusa mais um golpe.
A sabedoria transmitida pelos anciãos dos povos originários dizem que o céu pode cair. Davi Kopenawa em A queda do céu, alerta: “A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra, o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar, e as pedras vão rachar no calor.” A cadência do “pogréssio” é o motor dessa catástrofe que se desenrola diante da nossa subserviente apatia política e cultural.
*Escritora e poeta; doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS.
Foto: © Reprodução/Pandorafilmes.com.br
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