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Opinião

Milei e a onda de direita

Milei e a onda de direita

Artigo por RED
23/11/2023 05:30 • Atualizado em 26/11/2023 01:50
Milei e a onda de direita

De ALDO FORNAZIERI*

Nas eleições de domingo, os argentinos se depararam com duas escolhas trágicas: Javier Milei e Sergio Massa. Optaram por escolher a tragédia mais perigosa, mais abissal. Massa merecia perder e Milei não merecia vencer. Depois de anos sem perspectivas de futuro que empobreceram quase 50% população, os eleitores queriam a mudança. Massa, como ministro da Economia, deixou como legado uma inflação de 140%, que arruinou o poder aquisitivo dos salários. Como o peronismo pretendia vencer legando um quadro econômico e social desastroso? A arrogância ou a estupidez dos líderes peronistas determinou que o seu candidato fosse escolhido para perder.

Mergulhados no desespero, os argentinos escolheram o histrionismo político, o abismo caótico, o extravio anárquico, a promessa de uma liberdade enlouquecida, as tendências fascistizantes, uma esperança que nega a própria esperança. Milei é tudo isto e mais do que isto. Misturou vários ingredientes num panelão de enganos, para ludibriar um povo que quer alguma saída, mesmo que esta saída seja um angustiante caminho de confusões.

Milei produzirá muita espuma, muita confusão, para encobrir a inviabilidade de suas propostas e a escassa capacidade de governar que terá. Para governar, teria que patrocinar um pacto de concessões enormes a partidos de centro-direita. Elegeu-se com um discurso antissistema como fez Bolsonaro em 2018, mas terá que entregar-se ao sistema. Se não fizer isso, a Argentina mergulhará num redemoinho de confusões com desfecho imprevisível.

Milei não foi o principal responsável por sua vitória. Os artífices de seu triunfo foram Alberto Fernández, Sérgio Massa, o kirchnerismo, o peronismo e, subsidiariamente, Maurício Macri com o seu PRO e a União Cívica Radical (UCR). Esses atores afundaram a Argentina no endividamento, no descontrole das contas públicas, na desindustrialização, na inflação e na degradação social. Alberto Fernández mostrou-se um líder sem dignidade: dois dias após a derrota afirmou, desavergonhadamente: “No me siento responsable de la derrota”. Max Weber tinha razão: um grande crime político é fugir das responsabilidades pelos seus próprios atos e fracassos.

A Argentina tornou-se um dos principais expoentes da trágica normalidade da América Latina. Em síntese, esta pode ser definida como a incapacidade das elites políticas, econômicas e dos atores sociais de produzirem mudanças e inovações significativas, que provoquem uma redução drástica da pobreza, da exclusão social, da violência e garantam direitos, cidadania, justiça e liberdade para as maiorias sociais.

Os sistemas políticos e partidários latino-americanos, dominados por elites privilegiadas, são causa central da tragédia da região. Os sistemas políticos latino-americanos estão dominados pela patidocracia. Isto é, as confusas democracias da região são  capturadas pelos oligarcas dos partidos, que estabelecem um amplo domínio sobre as condições de disputas, o controle e as repartições dos orçamentos, os privilégios públicos e os favorecidos econômicos. As grandes massas se sentem excluídas e veem os políticos como incompetentes e corruptos.

Os oligarcas dos partidos – da esquerda à direita – se insularam da sociedade. Os partidos não representam fundamentalmente grupos sociais organizados, mas eleitores. Estes são manipulados e capturados por estratégias de marketing nas eleições. Esmeram-se no proselitismo dos programas sociais compensatórios – algo que mantém a dependência dos eleitores ao Estado e aos partidos. As oligarquias partidárias decidem prioritariamente em favor dos seus interesses, e secundariamente consideram os interesses da sociedade. Os preceitos da moralidade pública e do senso republicano não são considerados.

Os privilégios e as incapacidades das oligarquias partidárias são os principais fomentos da antipolítica, dos discursos antissistema e da extrema-direita. Quando ocorrem fracassos inexcusáveis das oligarquias partidárias, a extrema-direita está à espreita para vencer eleições, como ocorreu com Bolsonaro aqui e com Milei lá.

A vitória de Milei é o sintoma de uma crise das democracias latino-americanas. É um sintoma também da incapacidade dos partidos progressistas de produzirem transformações profundas na região. Parece evidente que os progressistas e as esquerdas precisam renovar não só suas lideranças, mas também suas pautas, suas visões de mundo. Precisam dotar-se de novas capacidades, capazes de responder aos imensos desafios do nosso tempo.

A vitória de Milei, assim, parece indicar uma nova onda de direita e de extrema-direita na região. A direita, com seus diferentes matizes, venceu recentemente, no Uruguai, Paraguai e Equador. Os governos de esquerda do Chile e da Colômbia não andam bem. No Peru, Pedro Castillo revelou-se um exótico desastre. O bukelismo político, com discurso punitivista e agressivo, vem se espalhando na América Latina e é assumido por uma nova geração de líderes de extrema-dieita.

O governo Lula ainda anda patinando numa série de problemas de condução política. A direita parece política e ideologicamente mais organizada na região. Mas a joia da coroa de todas as Américas pode ser tomada, no próximo ano, da presidência dos Estados Unidos com o retorno de Trump. Serão anos difíceis.

A vitória de Milei, além dos estragos que pode proporcionar em várias áreas internas e externas, dificulta também a projeção de poder internacional do Brasil e do governo Lula. O Brasil tem como uma de suas alavancas de projeção de poder internacional a aliança estratégia com a Argentina. Aliança que, agora, está sob interrogação. Se é verdade que os setores privados podem continuar incrementando o comércio, vários temas, tanto relativos ao Mercosul e à América do Sul, quanto em relação às negociações com a União Europeia e expansão dos BRICs, dependem de negociações entre governos.

O cenário menos ruim que pode ocorrer na Argentina consistiria na formação de um bloco entre a UCR, o PRO e outros partidos de direita que fosse capaz de impor os termos de uma governabilidade mais racional ao novo governo. Sozinho com seu grupo, Milei é frágil no Congresso, entre os governadores e no setor empresarial. Diferentemente do Brasil, os sindicatos e o próprio peronismo têm capacidade convocatória de grandes mobilizações. Se Milei não se deixar dominar pela comicidade histriônica e pelos espíritos caninos, terá que cair na real e perceber que terá limites por todos os lados. Mesmo assim, dificilmente a Argentina sairá da sua trágica normalidade.


*Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo e autor de Liderança e Poder (Editora Contracorrente, 2022).

Foto: reprodução X (Twitter) da Fundação FIL.

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