Opinião
Liberdade, obesidade e legitimidade no jornalismo gaúcho
Liberdade, obesidade e legitimidade no jornalismo gaúcho

De SANDRA BITENCOURT*
Dois acontecimentos jornalísticos colocaram em perspectiva nacional a dupla de emissoras de rádio mais importante do mercado – e da história- do Rio Grande do Sul nesta semana.
A Rádio Gaúcha fez uma entrevista com o governador mineiro, na qual Romeu Zema acusa o governo Federal de fazer vista grossa nos ataques aos três poderes com o intuito de se beneficiar e prejudicar a extrema direita. Já a Rádio Guaíba basicamente promoveu insultos ao ministro da Justiça Flávio Dino.
A Gaúcha fez jornalismo. A Guaíba fez vexame. Mas ambas pautas e condutas exploradas nos episódios merecem reflexão. Comecemos pelo mais vulgar e ultrajante.
Durante o programa ao vivo “Boa tarde Brasil”, um dos comentaristas, o advogado Luiz Antônio Beck, chamou o Ministro da Justiça Flávio Dino de comunista obeso. “O Dino, esse é uma hipocrisia total, ele é uma pessoa obesa e o comunista obeso, poderiam comer três, quatro famílias com que ele come”. O nível dos ataques da rádio bolsonarista – outrora Rede da Legalidade- ultrapassa quaisquer parâmetros aceitáveis para um veículo de concessão pública que deveria zelar pela qualidade da informação, pelo interesse público, pela pluralidade e por todos esses quetais da democracia que são tidos como entraves para vociferar toda sorte de crime e barbárie. Flávio Dino assim contestou: “Soube que em uma rádio do RS se dedicaram a comentários agressivos, preconceituosos e criminosos contra mim. Espero retratação. De todo modo, adianto que não invejo a esqualidez de pessoas que precisam de Código Penal, Código de Ética e um espelho.”
Como se percebe, a leveza de Dino contrasta com o sobrepeso calhorda que ora habita a esquina da Caldas Júnior. No entanto, fosse tomada alguma medida mais enérgica como cassar a concessão de veículo que não cumpre sua função social, não faltariam vozes para reclamar pela liberdade de expressão, na atualidade evocada como escudo para os ataques mais nefastos aos direitos de frações expressivas da sociedade e ao próprio sistema democrático.
Esse mesmo argumento da liberdade de expressão como exercício de direito absoluto guiou espertamente as declarações do governador Zema na Rádio Gaúcha, no programa “Timeline”, com Kelly Matos e Luciano Potter. E aqui, vejo necessário fazer uma distinção. Podemos questionar os enquadramentos, as interpretações, a escolha de fontes que a Gaúcha privilegia, mas seus profissionais são respeitosos e o veículo pratica jornalismo. Uma diferença descomunal para outras emissoras que abdicaram por completo da informação e promovem opiniões distorcidas, mentirosas e caóticas. No entanto, penso que o jornalismo precisa estar mais preparado para discutir a questão da liberdade de expressão. Há uma posição que tudo confunde com censura e geralmente bloqueia o debate ou, pior, permite que determinados argumentos sejam utilizados sem quaisquer questionamentos.
Essa questão da viabilidade da existência de direitos absolutos não é meramente jurídica, mas parte de uma visão filosófica. A proteção de direitos, liberdades, princípios, regras e valores, para além do reconhecimento e do ordenamento nos textos constitucionais, se inscreve nessa perspectiva que alcança graus de satisfação e cumprimento ligados a princípios de gradação e progressividade. Nesse movimento de consagrar, hierarquizar moralmente ou definir diferentes níveis de alcance de salvaguarda, podemos colocar o direito à Liberdade de Expressão como uma garantia que passa por uma série de problematizações. Trata-se de uma posição indiscutível ou podemos pensar que quando tal liberdade fere a própria Democracia deverá haver limitação ou modulação? O interesse público ou os direitos de outras pessoas podem diminuir o âmbito de sua proteção? É possível admitir restrições quando existem conflitos em casos concretos?
Ainda que não seja admitida censura prévia, há a possibilidade de prever responsabilidades subsequentes, necessárias para assegurar respeito pelos direitos ou reputação de outrem, ou proteção da segurança nacional, ordem pública ou saúde ou moral públicas.
Podemos fazer o seguinte exercício, retirando a questão da esfera da democracia e pegando outro tema de ordem moral. Seria razoável que alguém expressasse sua opinião defendendo a pedofilia? Alguém que julga aceitável praticar sexo com crianças e assim deseja se expressar, de modo pacífico, convocando inclusive outros com a mesma predileção, para realizar um manifesto e quem sabe marchar até uma escola e quebrar portas para tentar acessar crianças que ali estão protegidas? É aceitável, mesmo que prevendo o dano possível, permitir que defendam isso e se organizem para tanto? Ou a partir da ideia de um crime repugnante devemos empregar todas as forças para evitá-lo?
Por algum motivo, o estupro da constituição e dos poderes constituídos que são a organização e salvaguarda para a defesa de todos os outros direitos, parece ser algo aceitável.
O que deve fazer o jornalista diante dessa argumentação? No mínimo questionar. Vale o mesmo para quem evoca a liberdade individual para não se vacinar e com isso comprometer a saúde pública, contaminando os demais e sabotando uma estratégia coletiva que salva vidas. Devemos simplesmente abrir o microfone para que se expresse?
Se “a liberdade de informação e expressão é a pedra angular de toda sociedade livre e democrática” é preciso reconhecer que apesar da sua amplitude, não se trata de um direito absoluto. E mais. Torna-se ainda mais passível de preocupação se levarmos em conta o ambiente caótico de desordem informacional, aqui considerado como um fator grave de erosão democrática.
O importante papel social do jornalismo está também sob ataque. Ataque físico e violento inclusive, de quem não quer verdade e nem apuração dos fatos. Mas nada se compara ao tipo de destruição mais covarde, que é a que vem de dentro, do exercício simulado, como se jornalismo fosse, quando não passa do mais abjeto preconceito e interesse escuso. Estes sim, hipócritas, engordam e grassam em verde e amarelo.
*Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária.
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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