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Índia: um ascenso complexo e contraditório
Índia: um ascenso complexo e contraditório
Por Wagner Sousa*
O texto a seguir integra a edição nº 7 (setembro de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI. A publicação, na íntegra, pode ser lida ou baixada aqui.
Da independência ao caminho de grande potência
A Índia tornou-se, em 2023, quando ultrapassou a China, o país mais populoso do mundo, com 1,4 bilhão de habitantes. Divide com outros três (EUA, Rússia e China) a primazia de possuir a chamada “tríade nuclear”, a capacidade de lançar bombas atômicas através de mísseis, aviões e submarinos e também está neste “clube seleto” de nações com a alta competência científica de ter conseguido pousar uma nave em solo lunar. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a Índia deve crescer em 2024 em torno de 6,5% e tem sido um dos países líderes no ranking do crescimento econômico nos últimos anos. Serviços, telecomunicações e software têm destaque na economia, grande exportadora de medicamentos, diamantes e óleo refinado. Instituições financeiras como o banco Morgan Stanley têm afirmado que a Índia deve ultrapassar a Alemanha e o Japão e se tornar a terceira maior economia do mundo em 2027. Em tempos de rápido envelhecimento nos países ricos e mesmo na China, com redução da população, a demografia também é uma vantagem indiana. O paístem uma população crescente e mais jovem, o que deve suprir suas necessidades de trabalhadores nas próximas décadas. Esta evolução coloca para muitos analistas a percepção de que a Índia entrará para o grupo das grandes potências.
A compreensão do papel da Índia no grupo BRICS e sua relação com o Sul Global e também com os países desenvolvidos, parte do entendimento dos formuladores de política externa indianos deste país como “não ocidental” e não como “anti-ocidente”. A Índia nem sempre segue as regras do jogo ocidentais, mas não se coloca como ator antagônico. Participa da Organização para a Cooperação de Xangai e do BRICS, ao mesmo tempo em que é membro do QUAD (com Japão, Austrália e EUA), grupo que visa conter a China e tem diversas parcerias militares e tecnológicas com os Estados Unidos. Contudo, mantém relações importantes com a Rússia, de quem compra petróleo e armas e não condenou a invasão da Ucrânia. Esta postura de independência deriva do seu posicionamento no período da Guerra Fria no qual buscou não se alinhar com nenhum dos blocos liderados por EUA e URSS, buscando ter as melhores relações com ambos. Como menciona Henry Kissinger em Ordem Mundial: “A essência dessa estratégia residia no fato de que permitia à Índia obter apoio dos dois campos da Guerra Fria – assegurando ajuda militar e cooperação diplomática por parte do bloco soviético, enquanto flertava com os norte-americanos em busca de assistência para o seu desenvolvimento e do apoio moral por parte do establishment intelectual dos Estados Unidos. Por mais que isso fosse irritante para os Estados Unidos, era uma atitude sensata para uma nação emergente. Com uma capacidade militar então incipiente e uma economia subdesenvolvida, a Índia teria sido respeitada, mas como uma aliada de segunda linha. Na condição de um protagonista independente podia exercer uma influência muito mais abrangente.” (KISSINGER, 2015, p. 205,)
A Índia tem, portanto, desde sua independência da Grã-Bretanha, como elemento central de sua política externa a postura de não alinhamento a blocos ou países. E esta política tem a feito cortejada por potências ocidentais. Para os EUA, a Índia é uma espécie de pivot para a contenção da China e é interesse indiano a aliança com os EUA para se contrapor à força chinesa na Ásia. O tabuleiro geopolítico da vizinhança indiana é complexo e conta com países como a China e o Paquistão, contra os quais a Índia já travou guerras e tem contendas territoriais.
Índia: expansão dos BRICS, contradições internas e estratégia
O grupo BRIC, inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia e China se reuniu pela primeira vez em Iekaterinburgo, na Rússia, em 2009. Este grupo admitiu a África do Sul como membro pleno dois anos depois, tornando-se BRICS, e mais recentemente, em 2023, admitiu mais cinco membros plenos: Irã, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Egito e Etiópia. A sexta adesão, a da Argentina (que foi mediada pelo Brasil) não ocorreu pela negativa do presidente de extrema-direita argentino Javier Milei, em referendar a adesão ao grupo.
Dos membros fundadores, Índia e Brasil têm posição não favorável a uma rápida expansão do grupo, no que divergem da posição chinesa e russa, defensora da expansão e adesão de novos membros. Esta última posição prevaleceu na reunião de 2023 com a adesão dos referidos novos membros. A diluição do poder no interior do grupo e o risco da adoção de uma posição explicitamente anti-G7, com o grupo orbitando em torno da China, suas posições em relação aos EUA e o Ocidente como um todo e seus projetos de projeção geopolítica e geoeconômica, como a Belt and Road Initiative, a chamada “Nova Rota da Seda” são temores, em diferentes gradações, de Brasil e Índia, que têm procurado articular posições conjuntas no grupo, como a proposta de definição de critérios objetivos para novos adesões, o que deve ser discutido conjuntamente na próxima reunião dos BRICS, em outubro próximo, em Kazan, na Rússia. A despeito desta discussão, a expectativa é que sejam negociadas novas adesões, o que, caso realmente ocorra, confirmará a vitória da perspectiva sino-russa.
A despeito, até o momento ao menos, desta posição que atende especialmente às expectativas chinesas, este grupo alternativo ao G7 tornou-se arena política internacional importante para seus integrantes, e para a Índia possibilita o exercício de sua política externa independente.
Este processo de ascensão indiana não se dá sem contradições internas. O país possui centenas de milhões de habitantes vivendo com valores inferiores à linha de pobreza definida pelo Banco Mundial (pouco mais de 3 dólares diários) e o governo nacionalista hindu de Narendra Modi acentuou as divisões internas ao conduzir políticas contrárias (e em certos casos repressivas) à grande minoria muçulmana do país, em torno de 200 milhões de pessoas, o que também trouxe a crítica internacional ao que foi visto como declínio da democracia. Modi conquistou recentemente o direito ao terceiro mandato, contudo sem a maioria absoluta. A questão do “declínio democrático”, nos dois governos anteriores de Modi, não foi impedimento para que governos ocidentais como o norte-americano de Joe Biden e o francês de Emmanuel Macron buscassem estabelecer laços estratégicos.
Portanto, produto de suas opções de política externa, ser a ponte entre Ocidente e Oriente, com a busca da posição autônoma, está no cerne da Grande Estratégia da Índia.
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Foto: Freepik
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