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ESTRATÉGIA POLÍTICA E TRAGÉDIA CLIMÁTICA: UM NOVO MUNDO EM COMPASSO
ESTRATÉGIA POLÍTICA E TRAGÉDIA CLIMÁTICA: UM NOVO MUNDO EM COMPASSO
Por TARSO GENRO*
A ideia central da democracia política moderna vem da Revolução Francesa e sua síntese doutrinária está na Declaração Universal do Direitos Humanos de 1789. É uma ideia internacionalista que se reporta a todos os povos do planeta e tem a pretensão de virar o corpo do mundo de cabeça para baixo, sacudindo os Humanos para se moverem como indivíduos livres e destiná-los a uma complexa construção de um futuro comum.
A ideia central do projeto socialista do Manifesto Comunista foi o assalto aos céus, acionado pela fusão da economia política inglesa, o socialismo francês (originário da Luzes e da Declaração de 89), com a filosofia clássica alemã, separada dos seus elementos místicos. Sua utopia era uma sociedade de iguais em direitos e condições materiais, no final a extinção do Estado e o desaparecimento das classes sociais, numa sociedade composta por indivíduos autodeterminados.
Em ambas as hipóteses de desenvolvimento do Humano e do Social, o tratamento da natureza era considerado um desafio a ser vencido, para subjugá-la e colocá-la a serviço da liberdade de movimento, da formação de novos sistemas de organização da cultura e da ciência, do comércio e da indústria. A natureza, com suas leis imutáveis e eternamente desconhecidas, era uma inimiga a ser derrotada, juntamente com os Humanos “selvagens” que viviam estáveis no interior das suas leis da naturalidade.
O “afastamento das barreiras naturais”, do qual nos falou – muito depois – Georg Lukács, era o serviço único do progresso, que dispensava qualquer conciliação: o mundo era vasto, suas fontes de energia inesgotáveis e suas riquezas intermináveis. A unidade do capital global na sociedade burguesa e a unidade proletária mundial, na sociedade socialista – a forma que fosse vitoriosa – imporia o seu selo final na Humanidade reconciliada consigo mesma e com a natureza, vencida em nome do progresso.
Nos últimos 100 anos a História demonstrou que o planeta era esgotável, que suas riquezas são finitas, que a energia produzida volta-se contra quem as utilizou de maneira imediatista e ilimitada: as crises das guerras se somaram às crises ambientais e quanto mais se produzem armas letais, químicas inovadoras, softwares assassinos, quanto mais se queima, menos se respira.
De repente as grandes questões universais que separavam as duas versões finais da História, agora estão constituídas na finitude do modo de vida não orientado, fim da própria vida e da reprodução da espécie. A universalidade, que a partir do Século 18 era disposta pela questão democrática e pela questão da igualdade social, nas duas grandes revoluções – formas da República , formas da igualdade e do exercício real da liberdade – hoje estão atadas e dependentes, em qualquer hipótese, das soluções que forem dadas à questão climática.
Tenho defendido, nos últimos 30 anos da minha vida política e nos meios intelectuais que frequento, tanto dentro do meu Partido como fora dele (tanto dentro como fora do país) que a partir dos eventos neoliberais do economicismo “tatcherista” e da queda da URSS, a Humanidade não enfrentaria nenhuma questão importante – em termos locais, regionais e nacionais – que não fosse também uma questão global.
A transmissão comutativa de sinais e dados, os padrões culturais nos países hegemônicos (transferíveis rapidamente para a periferia), os recursos que viajam nas nuvens financeiras e as guerras sempre sujas – apresentadas como limpas – que assassinam multidões, estão no centro de uma moldura que cercou por inteiro o mundo. Hoje, esta mesma moldura cerca e se firma duramente no nosso Rio Grande.
O “muro da Mauá” e suas comportas não reparadas simbolizam o desdém dos negacionistas, que o venderam como painel de propaganda aos acomodados no atual do sistema, que não só negam a transição climática, ora em carne viva, e que também foram indiferentes a que o seu nervo exposto emergisse das águas, invadindo a cidade de Porto Alegre que dormia anestesiada, porque – afinal – não era hora de “buscar culpados”.
E agora, a cidade acordou em um novo mundo real que não reconhece, construído pela derrocada da democracia social no Reino Unido e pela quebra nada surpreendente do modelo soviético. A derrota das democracias europeias no Reino Unido, que abortaram de vez a ideia da Europa social – por um largo período – sinalizou o fim do sonho de uma Europa mais integrada pela igualdade social e menos pelas delícias da acumulação financeira sem trabalho
Grande parte das altas classes médias do Estado e dos seus empresários mais relevantes, aparentemente, já compreenderam que a crise climática existe no Estado e que aqui chegou por inteiro, mas não mudaram sua posição sobre nada. Alguns, premidos pela necessidade de responder aos seus problemas imediatos não puderam refletir, outros estão, ainda, dramaticamente estupefatos, mas pulsantes, para recuperar apenas os seus negócios destruídos pelo clima em rebelião.
Qual é a estratégia possível, daqui para diante, para todos os que querem repensar o mundo para mais democracia e mais cidadania e para vencer a crise com mais democracia, não com menos democracia, para um novo “mundo possível”? Trata-se, penso, da universalidade da questão climática que vincula todas as questões sociais ao novo “ser” histórico dos fluxos dos desastres, que tornaram os iguais menos iguais, os ricos, mais ricos e mais fortes, os pobres mais pobres.
Não haverá, daqui para diante, em nosso Estado e em nosso país, nenhuma questão que seja relacionada com as desigualdades sociais, com as oportunidades de vida e de felicidade que não esteja relacionada com o desafio climático.
O esforço de produzir e empreender estarão também ligados à problemática dos desajustes do clima e suas consequências, bem como ao necessário reconhecimento das responsabilidades mais imediatas dos omissos no poder público e dos seus cúmplices, incendiários das nossas reservas naturais, no cenário nacional e global.
*Ex-governador do RS, ex-prefeito de Porto Alegre, advogado, professor universitário, ensaísta, poeta. Foi ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça.
Foto: Gilvan Rocha/ Agência Brasil
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