Opinião
Efetividade e alcance da Constituição
Efetividade e alcance da Constituição

De BEN-HUR RAVA*
A Constituição tem esse nome e não outro, justamente porque constitui. Constitui o Estado, estabelecendo para este uma ordem jurídica que nasce, como ocorreu nos Estados Unidos, em 1787, ou uma nova ordem jurídica para um Estado que já existe, como foi o caso do Brasil, em várias etapas de nossa formação histórica, sendo a mais recente em 1988.
Para Tércio Sampaio Ferraz Jr., “uma Constituição não é apenas o seu texto, mas é principalmente, uma prática” 1 . Dizia Rui Barbosa que, ainda que a Constituição fosse tão perfeita, como se tivesse sido baixada dos céus, o país haveria de ser julgado não pelo seu texto, mas sim, segundo o modo pelo qual a puseram em prática.
A preocupação com os problemas institucionais, culmina, necessariamente, com a grave questão – mais sociológica do que jurídica – da eficácia constitucional. Não se tem encontrado, ao longo do tempo, generalizada adequação intelectual, e efetiva às nossas instituições, em grau que leve à sustentação sólida das mesmas. Se é verdade que os princípios fundamentais têm da comunidade nacional razoável adesão – embora não explícita, nem consciente – como é o caso da República, Federação, autonomia municipal, tripartição do poder e legalidade, as regras,
entretanto, que lhes asseguram a eficácia, são ignoradas, desprezadas, mal cumpridas. E, isto,com a aquiescência de uns, a indiferença de outros, a complacência de muitos; com a acomodação dos órgãos de promoção do direito e a preocupação de poucos.
Tão farta é a nossa produção legislativa, tão abundante é a elaboração normativa – em todos os âmbitos, áreas e quadrantes – que o número de declarações de inconstitucionalidade devia ser substancialmente mais significativo do que é. Só assim se limpa e corrige o sistema existente; só assim se prestigia a “corretezza costituzionale. Só assim os editores de normas inconstitucionais saberão, comedir-se. Para viabilizar esse urgente saneamento do nosso quadro normativo, impõe-se dar às medidas concretas para assegurar a mais pronta aplicação à norma que prevê, para associações expressivas de interesse coletivos, a legitimidade para postularem em juízo mandados de injunção e mesmo declarações de inconstitucionalidade.
Uma Constituição tem, sempre, duas dimensões correlatas: a de institucionalizar uma determinada concepção do homem, da sociedade e do Estado e a de estabelecer, em função dessa concepção, as regras gerais que nortearão um determinado projeto de sociedade2.
Hans Kelsen considera que existem princípios anteriores à formulação da primeira lei positiva, a qual denomina de norma fundamental, que seria aquela a delinear a vontade popular ou a dos detentores do poder na elaboração do texto magno3.
A Constituição e suas consequências, deve representar o jogo de interesses e de suas forças em sentido estático, uma espécie de amenização das mudanças já realizadas, apenas a letra da lei que expressa o que já se fez.
A consequência maior de uma Constituição, é a de que ela é, antes de tudo, um instrumento capaz de criar novas relações sociais, um espaço aberto onde o direito à contestação, a desestabilização, a construção de novas formas, e mesmo, em última instância, o direito de ultrapassar o status quo tem prioridade sobre quaisquer outros. Deste ponto de vista, a Constituição, não pode ser uma vontade geral que é uma simples soma das vontades particulares, mas uma vontade geral, que é a negação das vontades particulares; uma Constituição que regule o presente, abrindo-se para o futuro.
Tradicionalmente, as Constituições colocam em capítulos separados os assuntos ligados à estrutura do Estado, o funcionamento de seus órgãos, as formas de governo, os sistemas de escolha dos direitos e deveres dos titulares das funções públicas, a ordem econômica e social, os direitos e garantias individuais, etc. Se essa divisão tem sentido, por razões de metodologia científica, o fato é que, independentemente da ordem do enunciado destas questões, todas as Constituições exprimem valores filosóficos e concepções econômicas, sociais, culturais, vigentes em determinado tempo, em determinado lugar, reconhecidos pela maioria da coletividade. Assim, o problema da estrutura do poder político, de seus limites, atribuições e funções, depende basicamente da concepção que se tenha da sociedade e, sobretudo, da intenção de conservar ou modificar estruturas sociais e econômicas vigentes. Destarte, independentemente de sua finalidade única e exclusividade de limites, o poder político e o poder econômico, com vistas a assegurar a liberdade e a igualdade dos indivíduos, a Constituição pode ser também, na prática, um instrumento apto a conservar ou modificar a infraestrutura da sociedade.
A Constituição deve efetivar um controle da legitimidade do poder, da legalidade da atividade pública, do respeito e promoção dos direitos fundamentais. Deve, ainda, cuidar da verdadeira separação dos poderes, com mecanismos impeditivos da concentração dos mesmos.
Se da perspectiva política soubermos solucionar juridicamente, vale dizer, na conformidade da Constituição, as questões constitucionais, então estaremos sabendo da eficácia, da legalidade, da igualdade, da proteção dos direitos personalíssimos, das liberdades políticas, das condições de trabalho, do exercício profissional e da livre empresa, etc.
Para, entretanto, que tais postulados não caiam no vazio, se faz mister que as instituições tomem plena consciência que seu precípuo compromisso com o Direito está, em primeiro lugar, na fidelidade à Constituição. E, aos postulantes públicos e privados, caberá insistir, reiterar, repetir, renovar pedidos de que toda a norma que repugne à Constituição deve ser extirpada como um mal que contamina a sociedade. Quando esta ressurgir, estarão restaurados os padrões constitucionais que sempre almejamos praticar; estará avivado o espírito constitucional e jurídico que caracteriza os povos civilizados. Há que se fazer valer a “força normativa”da Constituição, na lição de Konrad Hesse.
A meditação sobre as virtudes do princípio republicano, especialmente o modo como veio intencionalmente posto entre nós, suscitará críticas construtivas sobre a prática constitucional e levantará outras meditações, cujo debate será fecundo, assim em termos acadêmicos, como práticos.
A República é a síntese de todas as nossas instituições. Imperativo é conhecer-lhe a existência e dominar as bases de todo o direito público que a anima. O princípio republicano foi posto, desde 1889 no centro de nosso direito. Até hoje é sua instituição mais importante da qual ele depende e a cujo redor constrói-se, feitas as ressalvas inerentes à precariedade e deficiência do sistema presidencial de governo.
Excelente oportunidade temos como cidadãos no exercício de nossas prerrogativas, de colaborar para dar eficácia ao princípio republicano,em inúmeras de suas projeções na Constituição de 1988.
Tudo deve ser feito para evitar distorções no funcionamento dos organismos institucionais básicos. Todos esforços devemos fazer, pregando, instando, vigiando e agindo para o mais cedo possível, prevenirmo-nos contra a natural tendência dos agentes públicos, inclusive políticos, para continuarem procedendo como antes de modo tradicional viciado, na suposição de que houve mera troca de nomes e designações ou simples alterações de alcance meramente formal.
Na verdade, a nova Constituição muda a substância da sociedade brasileira, e introduz alterações extremamente importantes como os institutos constitucionais do mandado de injunção e da inconstitucionalidade por omissão que, se não forem assim tratados adequadamente, perderão a sua significação,trazendo trágicas frustrações à sociedade.
Sendo a Constituição a lei suprema, superior às demais, deve prevalecer sobre todas as normas, o que requer desassombrada ação de uma magistratura culta e imparcial -objetiva e subjetivamente imparcial, como quer Balladori Pallieri, para ver configurado o Estado de Direito – que se mova expeditamente,provocada por órgãos e agentes públicos e privados, empenhados no postular,instar, pedir, questionar incansavelmente no sentido do prestígio constitucional de todas as pessoas.
Doutro lado, cessada a situação excepcional, há imperiosa necessidade de que os procedimentos jurídicos mais expeditos e enérgicos sejam usados em vista à responsabilização dos executores ou agentes das referidas medidas.
*Advogado e Professor universitário.
1 FERRAZ JÚNIOR., Tercio Sampaio. Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
2 Hélio Jaguaribe, Jornal Folha de São Paulo, 12.11.86, p. 4.
3 “O fato de uma norma pertencer a uma determinada ordem normativa baseia-se em que seu último fundamento
de validade e a norma fundamental desta ordem. E a norma fundamental que constitui a unidade de uma
pluralidade de normas enquanto representa o fundamento da validade de todas as normas pertencentes a esta
ordem normativa” (in Teoria Pura do Direito, Ed. Armênio Amadio, Coimbra, 1979, p. 269).
Essa é uma série especial dedicada à Constituição Federal, que no dia 05 de outubro comemora 34 anos de sua promulgação. Ao longo deste mês, publicaremos artigos de opinião apresentando conceitos, perspectivas históricas, visões e críticas sobre a Constituição Federal Brasileira.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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