Opinião
Dona América da Vila Inferninho
Dona América da Vila Inferninho
De EUGÊNIO BORTOLON*
Não sei se a dona América está ainda viva. Se estiver, teria perto de 100 anos. Mas não creio que tenha resistido a tantas punhaladas da vida. Negra, forte, com uma penca de filhos, morava na Vila Inferninho, a favela de Vacaria dos anos 50 e 60, bem atrás da vida cheia de ostentação do quartel do Batalhão Rodoviário do Exército Nacional. Era uma mulher que tinha tudo para estar com a cara amarrada o tempo todo, tal o nível de sofrimento que carregava nas mãos, nas pernas e no estômago – quase sempre vazio, mesmo com as migalhas que recebia da elite rural e dos burgueses da cidade onde prestava seus serviços, mas que preferia repassar aos filhos, que ‘precisam crescer’, nas suas palavras da época. Mas não. Estava sempre com o sorriso aberto, apresentando os seus dentes alvos, brancos, bem delineados e invejados pelos brancos. Não sabia ler, nem escrever e nem conhecia direito o valor do dinheiro.
Era de uma submissão atroz aos brancos aos olhos de um guri que começava a observar o mundo e notava, mesmo com muitas deformações, as diferenças da ‘humanidade’. Tempos de Juscelino, Jânio, Lott, John Kennedy, viagens espaciais, revoluções, golpes, Jovem Guarda, Beatles, televisão e assim por diante.
Tudo isso passava ao largo da vida de dona América. A sua luta era só buscar comida todos os dias pela cidadezinha que começava a crescer. Trabalhava aqui e ali como doméstica, fazendo serviço pesado, sem carteira, pelo que pagavam e não pelo que merecia. Ou ainda pela comida que sobrava da mesa dos outros. Talvez ela não tivesse a dimensão dos seus direitos. Nem que era negra e mulher. Ela só se achava diferente, que não poderia fazer qualquer refeição na mesa dos patrões, que os filhos que a acompanhavam eventualmente ao serviço deveriam ficar fora da casa e que não poderiam brincar nos quartos dos filhos destas pessoas que a empregavam.
Preconceito racial? Nada disso. Ela nunca deve ter ouvido qualquer coisa do gênero. Na época também não se falava disso, mesmo eclodindo nos EUA a luta dos blacks por maior soberania de vida e pelo fim da discriminação nas escolas, nas ruas, no transporte, em quase tudo ou tudo mesmo. Interior do Rio Grande naquela época era terra de quem achava que cada um deveria ir e ficar no seu lugar. América achava isso. ‘Nós conhecemos o nosso lugar’, imagino, hoje, ela dizendo esta frase marcante que ainda perdura por aí como um mantra de gente repugnante, que se acha com o rei na barriga e se acha no direito de escravizar pessoas pelas vinícolas e arrozais gaúchos.
O nome sugestivo que tem, América não sabia de onde veio. Seus pais talvez só achassem bonita a pronúncia, se encantaram e assim a registraram. Será que registraram mesmo? A saga desta mulher, que nunca passou dos limites de uma cidade ruralista e nem deve ter imaginado algo como praia, mar, avião, jamais sonhou em mudar de vida, festejar o dia e o mês das mulheres, ver televisão colorida, sonhar, consumir, ter algo para o futuro da sua prole. Só vivia o hoje. E o hoje era comida. Salário, só aquilo que lhe oferecessem. Não tinha coragem de fixar honorários pelos seus serviços. ‘O que a senhora me der, tá bom’, vejo ela dizendo isso.
Dona América reapareceu na minha memória nos últimos dias quando as notícias de trabalho escravo nas vinícolas de Bento e nos arrozais de Uruguaiana encheram as mídias com manifestações de todos os tipos, democráticas ou fascistas, humanas ou desumanas. O que seria dela na Vacaria de hoje? Uma escrava na colheita de maçãs (cidade é uma das maiores produtoras/exportadoras do Brasil e utiliza safristas) ou uma empregada doméstica sem carteira da ‘nobreza’ local? América estaria ainda buscando apenas comida ‘para viver o hoje’ ou estaria batalhando para ter um celular, uma casa, uma tevê bonita e grande e viajaria para as praias? Será que ela ganharia Bolsa Família e pensaria que ser negra, mulher, não a reduzem como ser humano como naquela época? Estas e tantas outras questões atravessam o tempo e mostram que as coisas foram só trocadas de nome ou de forma. O conteúdo e a apresentação parecem ser os mesmos. O mundo da América e o meu mudaram muito, mas parece que ainda estamos no mesmo lugar.
*Jornalista com mais de 50 anos de trajetória. Destaque na editoria de economia.
Imagem em Pixabay.
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