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Democracia representativa é coisa da burguesia?

Democracia representativa é coisa da burguesia?

Politica por RED
30/11/2024 09:30 • Atualizado em 30/11/2024 11:17
Democracia representativa é coisa da burguesia?

Por MARIA DA GRAÇA PINTO BULHÕES*

A democracia representativa foi uma criação da burguesia revolucionária no século XVIII, na luta contra as monarquias absolutistas, para ter poder de Estado e com ele proteger seus interesses. Os trabalhadores ficaram de fora e tiveram que lutar por mais de um século pelo direito de voto e liberdade de organização sindical e política, inicialmente proibidas. Eles eram apenas uma mercadoria, paga pelo mínimo necessário para sobreviver enquanto vendessem sua força de trabalho, sem remuneração em situação de desemprego, doença, gravidez ou envelhecimento e sem acesso a bens como educação ou saúde.

Foi neste mundo que Marx afirmou, na Europa em meados do século XIX, que o Estado era apenas “um comitê para gerenciar os assuntos comuns de toda a burguesia”. A democracia era a democracia burguesa. Mas, ao final deste século, a situação mudou, os trabalhadores conquistaram os direitos de voto e de organização partidária, que Engels considerou importantes para a luta reivindicatória dos trabalhadores dentro da ordem capitalista, combate que os prepararia para a revolução capaz de romper com o capitalismo e criar outro sistema, o socialismo.

A revolução socialista, no entanto, ocorreu, no início do século XX, num dos países mais atrasados da Europa, a Rússia, onde a burguesia sequer havia derrotado a monarquia absolutista. A revolução foi possível em condições muito especiais de fragilidade da burguesia russa, diante do acúmulo de derrotas na primeira guerra mundial e de demandas populares urbanas e rurais, lideradas por um partido socialista fortemente organizado.

O governo socialista tomou o poder do Estado, herdando o desafio de desenvolver a industrialização e modernização do país – tarefas realizadas até então nas nações capitalistas sob regimes de exclusão social e política – e, ao mesmo tempo, o compromisso de distribuir a riqueza e o poder político prometidos pela revolução. Tudo isto sob o ataque de exércitos de países capitalistas vizinhos inimigos da nova ordem, a qual a Rússia revolucionária propunha levar para os demais países do mundo, através da organização da III Internacional, a Internacional Comunista.

A revolução socialista foi tentada também na Alemanha e foi ensaiada na Itália, no início do século XX, por lideranças identificadas com a revolução russa, baseadas na avaliação de que, em países capitalistas, o momento revolucionário seria o de uma crise econômica profunda, como acontecia então na Europa. Lideranças socialistas que defendiam como estratégia a luta reivindicatória e reformas dentro da ordem capitalista não apoiaram as tentativas revolucionárias. A resposta da burguesia destes dois países ao avanço das demandas populares e da organização sindical e partidária dos trabalhadores e às tentativas revolucionárias foi a eliminação da democracia representativa e a instalação de um regime extremamente autoritário: o fascismo, que se expandiu pela Europa.

 

A democracia tornou-se a bandeira de comunistas e socialistas

Em resposta ao avanço do fascismo, a Internacional Comunista reformulou sua posição tática, passando a defender como prioridade, naquele momento, não mais a revolução socialista, mas a luta dos trabalhadores pela democracia, pelos direitos de expressão, organização e manifestação a ela associados, e propondo que a revolução ficasse adiada, porém no horizonte. Após as derrotas sofridas, as lideranças defensoras da revolução socialista na Europa se impuseram uma reflexão sobre suas causas.

Na Itália, Gramsci, membro do partido comunista, concluiu que em países capitalistas mais desenvolvidos a burguesia não dominava apenas com o uso das forças de coerção do Estado, mas também com a direção política sobre a maioria dos explorados e dominados, obtida através de uma rede de organizações privadas, como a igreja, os sindicatos, as escolas etc. – a sociedade civil – através das quais obtinha hegemonia, veiculando sua visão de mundo. O Estado combinava assim coerção e consentimento. Gramsci propunha que a classe operária deveria se tornar dirigente, isto é, conquistar a hegemonia política antes de apoderar-se do Estado, como aparato de coerção, inclusive para mantê-lo posteriormente.

Até 1945, a luta central das lideranças do campo socialista, tanto das que seguiam a orientação da Internacional Comunista, quanto das que dela discordavam, foi pela reconquista da democracia e contra o fascismo. Após a derrota dos principais países fascistas na segunda guerra mundial, num mundo dividido pela guerra fria entre países capitalistas e países socialistas, avançaram formas de organização social em que a vida coletiva era uma preocupação central.

Por um lado, a Rússia, que fora decisiva na derrota da Alemanha nazista, expandiu sua área de influência com a inclusão de países da Europa central em seu bloco político, como parte da Alemanha, Polônia, Hungria e Tchecoslováquia, e novos países passaram a adotar o sistema socialista como a China e Cuba e, posteriormente, o Vietnã e Angola. A proposta de ampliação do mundo socialista ganhava força em diferentes continentes, como uma ameaça ao mundo capitalista.

Por outro lado, nos países capitalistas mais desenvolvidos uma transformação profunda passou a ocorrer na forma de funcionamento do sistema, cuja produção perdera a capacidade de regular-se através do mercado.

 

A democracia representativa tornou-se arena de disputa da riqueza social

Nos países capitalistas desenvolvidos, criou-se um fundo público que, através das instituições políticas democráticas, passou a ser um pressuposto necessário para o financiamento da acumulação de capital, com seus crescentes investimentos em tecnologia, e, por outro lado, para o financiamento da reprodução da força de trabalho, através dos gastos sociais. As instituições de representação e decisão política tornaram-se espaços prioritários de luta pela destinação da riqueza socialmente produzida, através da disputa do fundo público, do orçamento do Estado.

Esta transformação, conhecida como o Estado de bem-estar social, alterou a situação dos trabalhadores que, na condição de cidadãos de seus países, passaram a ter direitos sociais financiados pelo Estado, que lhes garantiram ter renda em todos os momentos de sua vida (na situação de desemprego, doença, gravidez, velhice) e aumentar esta renda na medida em que passaram a receber gratuitamente do Estado bens e serviços como saúde, educação e cultura ou, por preços subsidiados pelo Estado, bens como o transporte público. O Estado de bem-estar social foi uma construção negociada entre organizações representativas de empresários e de trabalhadores e representantes do Estado e contou com volumosos recursos financeiros obtidos com a taxação das empresas, numa transferência, via políticas públicas, de parte significativa dos lucros para a renda dos trabalhadores.

A partir do final da década de 70, no entanto, num período de crise econômica, as grandes corporações capitalistas, com a redução de seus lucros em função inclusive dos gastos com salários e impostos, passaram a transferir unidades produtivas para países com menores salários, impostos e exigências de proteção ao meio ambiente, deixando seus Estados nacionais de origem, vários deles sob governos social-democratas, em crise de déficit público, tendo que pagar os direitos sociais a suas populações, sem contar com os impostos anteriormente recolhidos das grandes empresas.

Neste cenário de crise econômica, passaram a ganhar espaço as antigas posições políticas liberais, agora denominadas de neoliberais: tentar reduzir a atuação do Estado quanto às políticas sociais e manter os trabalhadores na condição de apenas mercadoria, recebendo só enquanto trabalham, e vendo seus direitos sociais serem reduzidos. O Estado, em crise de déficit público, passou a ser atacado pelos neoliberais como a causa das dificuldades vividas pela população, ainda que, ao mesmo tempo, não propusessem a redução do apoio do Estado às necessidades de acumulação das grandes empresas, como as formas diversas de financiamento e incentivos fiscais ou o desenvolvimento de tecnologias de ponta pelo governo, depois incorporadas às empresas privadas, como ocorreu na área da informática.

O crescimento das posições neoliberais nos países desenvolvidos e no mundo em geral ocorreu ao mesmo tempo que avançava a crise da União Soviética – bloco de países socialistas que tinham a Rússia como liderança – crise que se iniciou nos anos 70 e chegou ao ápice com a dissolução do bloco soviético em 1991. A Rússia revolucionária de 1917 realizou sua primeira e segunda revolução industrial, resistiu e derrotou a máquina de guerra nazista da Alemanha, competiu com os Estados Unidos a liderança da economia mundial no pós-segunda guerra, desenvolveu tecnologia de ponta na área militar, mas não conseguiu realizar a terceira revolução industrial, a chamada revolução tecnológica, da informática e da robotização da produção. O desenvolvimento da Rússia se deu por meio de um sistema de produção altamente centralizado e de um regime político autoritário, que, no entanto, geraram uma sociedade urbanizada, escolarizada e com acesso à cultura, complexa o suficiente, no final do século XX, para demandar a liberalização do regime político sem utilizar as armas, através apenas de manifestações políticas públicas.

 

A democracia tornou-se estratégica para os socialistas

O século XXI começou, portanto, sem a ameaça de expansão do bloco socialista em diferentes continentes e com o predomínio da concepção neoliberal de mundo, com o controle do capital financeiro sobre as economias, com a resultante reconcentração da riqueza – nos países desenvolvidos se aproximando de patamares comparáveis aos do século XIX – com o crescimento de situações precárias de trabalho e da pobreza, com o enfraquecimento das organizações coletivas, como os sindicatos e os partidos de trabalhadores, e com o crescimento de posturas individualistas e da influência religiosa.

Diante do crescimento da insatisfação de amplos setores das populações com suas perdas de renda e condições de vida, acrescidas da crescente presença de imigrantes nos países capitalistas desenvolvidos, em busca dos direitos sociais criados pelo Estado de bem-estar social, a extrema direita, com posições fascistas, passou a se utilizar do ressentimento gerado pelas perdas populares e a apontar o regime político democrático e suas instituições estatais, as mesmas que criaram o Estado de bem-estar social, como causadoras de todos os males, num discurso antissistema.

As lideranças socialistas, com suas diferentes correntes, diante do avanço internacional de forças de extrema direita, expresso claramente neste momento na vitória de Trump para a presidência do país que lidera o mundo capitalista, os Estados Unidos, têm voltado novamente a priorizar a luta pela manutenção da democracia, organizando frentes democráticas amplas, como fizeram na primeira metade do século XX, para frear o avanço do fascismo.

Ao mesmo tempo, a maior parte destas lideranças passou a retirar do horizonte a revolução socialista como o “assalto ao palácio de inverno de 1917”, posição já adotada na segunda metade do século XX por partidos comunistas da Europa. As lideranças socialistas passaram a formular, como sua estratégia, portanto de longo prazo, os conceitos de “democracia de massas”, “democracia progressiva”, “aprofundamento da democracia”, a serem realizados por meio da articulação de formas de participação direta da população com a democracia representativa, com o objetivo de colocar progressivamente o Estado a serviço dos setores populares.

Por trás da adoção da via estratégica democrática a uma sociedade igualitária, que atenda de forma justa às necessidades de toda a população, está a configuração extremamente complexa das sociedades geradas com o avanço da informática e da automação. Não há mais, como no século XIX e início do XX, o crescimento constante de uma classe social com as características do operariado industrial, que trabalhava reunido nas fábricas, com condições semelhantes de trabalho e organizados em sindicatos e posteriormente em partidos, e que era considerado, desde Marx, a classe social capaz de libertar a si mesma da exploração do capital e, ao mesmo tempo, libertar a toda a sociedade.

Imagem gerada por IA

 

A democracia tornou-se coisa dos trabalhadores

No século XXI, não há um proletariado industrial revolucionário e sim um “proletariado em sentido amplo”, um amplo campo dos trabalhadores, cada vez mais numeroso no setor de serviços, em tipos de unidades produtivas diversos, trabalhando também em suas residências, individualmente, e utilizando seus próprios recursos para o trabalho. O campo dos trabalhadores é hoje muito diversificado, fragmentado, em grande parte desprovido de direitos, recebendo apenas enquanto exerce seu trabalho. Sem incluir ainda o crescente contingente de desempregados, resultante do avanço da utilização de modernas tecnologias no mundo do trabalho. As formas tradicionais de organização dos trabalhadores, seus sindicatos e partidos, não são hoje capazes de representá-los e mobilizá-los e grande parte deles, trabalhando na informalidade, não tem formas de organização e diálogo coletivo.

A composição de bandeiras que unifiquem o campo tão diversificado e fragmentado do trabalho hoje implica um diálogo e construção coletiva complexos, que só podem ser realizados por organizações capazes de ouvir os diferentes segmentos e com eles elaborar propostas. Neste campo, além das propostas que possam unificar a maior parte dos trabalhadores, condição para a eleição de governos e consequente gestão do Estado e dos fundos públicos, há ainda as bandeiras de grupos identitários, relativos à raça, gênero etc., que se fazem presentes e reivindicam atendimento.

O complexo campo dos trabalhadores está sendo disputado hoje pela ideologia neoliberal, pelas igrejas e forças políticas que reforçam o individualismo e criticam o coletivismo como alternativa para os trabalhadores, seja ele o sindical, partidário ou do Estado, e que utilizam como canais de comunicação, além das atividades presenciais das igrejas, as redes sociais disponibilizadas pela revolução tecnológica digital. As lideranças de esquerda, que passaram crescentemente a ocupar espaços nas instituições da democracia representativa, tenderam a se afastar de suas bases partidárias, num movimento historicamente típico das grandes organizações, fragilizando as organizações de base da sociedade civil.

Se o caminho dos socialistas para a construção de uma sociedade igualitária é pela manutenção e aprofundamento constante da democracia e, principalmente, pela colocação das demandas populares no orçamento público, a postura das lideranças de esquerda precisa ser efetivamente democrática. O que implica respeitar a existência e opinião de outras correntes políticas democráticas, com elas dialogar, sem considerá-las sempre como mal-intencionadas ou ignorantes e sim como formas diversas de ver o mundo, orientadas por concepções e valores diferentes. O que implica também buscar compor frentes amplas democráticas capazes de isolar as forças de extrema direita.

Ninguém conquista corações e mentes desprezando o diferente, nem colocando-se em uma posição superior, professoral. A esquerda que cresceu pensando representar uma classe portadora da verdade revolucionária, fadada a ser necessariamente vitoriosa e emancipadora de toda a sociedade, para poder seguir pelo caminho do aprofundamento da democracia em direção a uma sociedade igualitária, precisará refazer sua postura, abandonar sua onipotência e se dispor de fato a ouvir, estudar para conhecer a realidade, respeitar a opinião diferente, dialogar com ela e se qualificar, inclusive em termos de capacidade tecnológica, para construir coletivamente, num campo complexo como é hoje o mundo do trabalho, alternativas de mudança.

Hoje os representantes do capital financeiro, das grandes corporações econômicas e das forças políticas de direita e principalmente de extrema-direita se dedicam a atacar o Estado e as políticas sociais, desqualificá-los publicamente, e restringir o espaço da democracia representativa, ao mesmo tempo em que buscam no fundo público a proteção de seus interesses. Os socialistas, por sua vez, inclusive os anteriormente defensores da revolução para a tomada do Estado, têm passado cada vez mais a entender que o Estado e a democracia e suas instituições fundamentais, articuladas a formas diversas de participação popular, são condição para a luta dos trabalhadores no longo prazo.

*Maria da Graça Pinto Bulhões é socióloga e professora da UFRGS, aposentada.

Foto de capa: Protestos por democracia no Brasil em maio de 2021 [Antoniani Cassara/Mídia Ninja]

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