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Opinião

As secas no RS exportador de água

As secas no RS exportador de água

Artigo por RED
17/02/2023 05:30 • Atualizado em 21/02/2023 23:20
As secas no RS exportador de água

Por WALTER MORALES ARAGÃO*

“Essa água brilhante que escorre nos
riachos e rios não é apenas água, mas o sangue
de nossos antepassados. (…) O murmúrio das
águas é a voz de meus ancestrais. (…) Tudo está
associado. O que fere a terra, fere também os
filhos da terra.”
Trechos de ditos atribuídos ao Chefe Seatle, do
povo Suquamish, em mensagem ao presidente
Francis Pierce, dos EUA, em 1855.

Já por três verões consecutivos o Rio Grande do Sul enfrenta secas, sendo esta de 2022-2023 a mais severa em trinta anos nas regiões da Campanha e da Fronteira Oeste. E muito pronunciada também na Região Metropolitana de Porto Alegre, destacando-se na mídia as situações graves dos rios Gravataí e mesmo do Lago Guaíba. Recorde-se que, no verão de 2014 para 2015 outra seca muito forte atingiu as regiões Sul e Sudeste do Brasil, castigando Curitiba por mais de um ano e obrigando a cidade de São Paulo a buscar água no fundo dos reservatórios, o então famoso “volume morto”, abaixo dos níveis costumeiros de captação. Apontei as grandes secas de 2015 e 2021/22 na primeira edição de meu livro “Água e luta de classes”, já comentado em sua reedição no programa Espaço Plural, aqui da RED – Rede Estação Democracia.

As discussões técnicas e na opinião pública a respeito desses fenômenos foram intensas. Não muito plurais, porém, em suas abordagens na mídia empresarial, como é do feitio das grandes empresas capitalistas de comunicação, tanto naquele momento como agora. Ocorre que o viés neoliberal da abordagem neste tema da escassez de água privilegia as causas naturais, mesmo com as denúncias feitas pelos movimentos sociais e democráticos de que os investimentos setoriais foram reduzidos no período recente, em seguimento ao dogma neoliberal da austeridade nas áreas sociais.

Uma prova disto é o andamento de processos de privatização dos serviços de abastecimento urbano de água potável – o qual é apenas um dos sistemas que usam recursos hídricos. Privatizações mantidas inabalavelmente, com nítida tendência à majoração das tarifas para a extração de lucro privado, mesmo em meio ao quadro dramático dos mananciais. E isso mesmo com diversos relatos, nos pequenos municípios rurais, de que parte da criação de animais é salva durante a seca com o recurso às redes urbanas de abastecimento de água. O não cancelamento da privatização da CORSAN em meio a uma crise destas é assim, também por isto, a demonstração de uma insensibilidade grotesca ao social e de uma governança hostil ao interesse público, mas amicíssima do interesse privado.

Outra abordagem explicativa escamoteada, mas que regionalmente vem ao caso, é a do uso intensivo e massivo da água pelo modelo agroexportador primário do RS. É muito divulgada pelos educadores ambientais a proporção mundial de uso dos recursos hídricos por setores. Em grandes números, as cidades usariam 10%, as indústrias 20% e a agricultura 70%. Assim, uma consequência evidente seria a de que, sendo os grãos, notadamente a soja, o item principal das exportações gaúchas, seria o Rio Grande do Sul um grande exportador de água, na
forma de produtos agropecuários. Por exemplo, na soja, a exportação de 16 milhões de toneladas de grãos, somente em 2022, teria mandado ao exterior algo em torno de 11 milhões de toneladas de água.

Situação parecida ocorre, com certeza, nas exportações de carnes. Estima-se a necessidade de trezentos litros de água para a produção de um quilo de carne bovina. E muito do milho produzido e vendido aqui é usado na produção de suínos e frangos para a exportação.

O raciocínio acima é aplicável, também, às lavouras de arroz irrigado. Voltadas principalmente para o mercado interno, mas tentadas à exportação em épocas de câmbio desfavorável à moeda nacional e de conflitos militares em outros países produtores de alimentos, como a Ucrânia. Tais efeitos mostram-se relevantes ao verificar-se que o estado produz mais da metade de todo o arroz do Brasil. Neste quadro, a inflação atual dos preços dos alimentos no mercado interno é reforçada pelo cenário externo e pela crise hídrica.

Até estudos de história do movimento sindical apontam tensões semelhantes no passado. Um caso deu-se durante a I Guerra Mundial. A valorização dos alimentos, causada pela interrupção da produção europeia, levou a um aumento das exportações gaúchas e, em decorrência, a uma inflação forte nos preços dos alimentos no mercado interno. E esta, por sua vez, teria sido uma das motivações da grande Greve Geral de 1917, a qual obrigou o governo de Borges de Medeiros a tabelar os preços do arroz e do charque – alimentos básicos para a população numa época em que não se tinha geladeiras.

A falta de ações preventivas, compensatórias ambientais ou fiscais e mesmo educativas (muito da água usada na agricultura é desperdiçada por ineficiência técnica) contra as conhecidas estiagens recentes no RS, por parte dos governos neoliberais de Leite e Bolsonaro – que não é casual, mas decorrente de questão de princípios dos que creem na lenda da autorregulação dos mercados – é ela mesma, portanto, também uma produtora da situação dramática em que se encontram centenas de municípios do Rio Grande do Sul. E isto em meio às mudanças climáticas. Até lideranças do passado, como Borges de Medeiros, o cacique Seatle ou mesmo D. Pedro II – que mandou replantar a Floresta da Tijuca para proteger as fontes de água do Rio de Janeiro – compreenderiam e enfrentariam melhor do que os neoliberais do Brasil atual a situação gaúcha de 2023.


*Professor de Filosofia. Possui especialização em História Contemporânea, Mestrado e Doutorado em Planejamento Urbano e Regional. É participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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