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As Religiões Monoteistas e a Busca da Felicidade
As Religiões Monoteistas e a Busca da Felicidade
Por JOÃO BATISTA MEZZOMO*
Antes de iniciarmos a consideração deste complexo assunto, das três religiões monoteístas e sua ligação com a própria busca da felicidade, devemos levar em conta que uma boa parte da humanidade leva em consideração os relatos das religiões. Neste caso, se queremos ser efetivos em nossa análise, devemos admitir, ao menos em hipótese, que tais relatos se refiram a eventos reais. Ou seja, pouco importa se “Deus” existe ou não, pois isso não vai mudar a crença das pessoas a respeito “d’Ele” nem os problemas que tais crenças acarretam. Então, no presente artigo, “Deus” (assim entre aspas) é uma hipótese. Nós não sabemos se “Ele” existe – o que já falamos ser irrelevante para o assunto trazido – muito menos em que consiste, no caso de existir. Essa segunda questão, da eventual consistência de “Deus”, sim, é fundamental para uma compreensão mais efetiva da questão.
Antes de entrarmos na questão propriamente dita, queremos lembrar alguns fundamentos do modo que adotamos para considerar todos os assuntos, modos os quais em parte já tratamos em nosso artigo “Prolegômenos”. Primeiramente, nós consideramos que “a verdade está no todo”, como disse Hegel. Sendo hegelianos com Hegel, devemos dizer que ele está certo, porém, isso não significa que necessariamente tenha alcançado “o lugar da verdade”. Pois dizer que a verdade está no todo não é o mesmo que alcançá-la, todos estão certos a partir de seu ponto de vista, mas, se a verdade está no todo, ela deve abarcar todos os pontos de vista. Não é o assunto de hoje, mas devemos dizer que Hegel não adotou integralmente o princípio que disse ou mesmo pensou ter adotado, na medida em que estabeleceu hierarquias, quer seja em relação aos diversos tipos de juízo, quer em relação às diversas culturas humanas. Por exemplo, ele julgou superior a consideração racional do mundo dos dias atuais, que ficou expressa em sua frase “todo o real é racional”. Mesmo que tal frase possa ser interpretada de múltiplas formas, no concreto de seu pensamento ele teve de aceitar coisas como “Deus” e “espírito” como algo dado, de modo que não pode se perguntar sobre o que seria “Deus”, no caso de existir, nem como “Ele” teria conseguido realizar coisas que ultrapassam a própria racionalidade. Também, e tem relação com a primeira, ele julgou a civilização ocidental superior às demais, e dentro dela, os germanos e dentro deles, o estado prussiano como o ápice da realização do espírito. Seria o mesmo que, no atual conflito entre Israel e o Hamas, julgar um dos lados certo e o outro errado. Em qualquer dos casos, estaríamos certos, mas a verdade somente poderá se avizinhar de nós se pudermos incluir os dois pontos de vista oponentes na mesma visão do todo. Ocorre que Hegel, como toda a filosofia até os dias atuais, tem como limite a racionalidade, pois lá no seu início, em Parmênides e Sócrates, como uma espécie de pecado original, a filosofia passou a se ocupar apenas do ser, que pode ser pensado, e deixou de lado o não-ser, que não pode ser pensado nem compreendido pela razão especulativa. Obviamente, a filosofia não nasceu de um ovo chocado ao sol, ela expressou a necessidade de uma consideração do mundo isenta de sobrenatural. E isso foi feito, de modo que hoje nos parece óbvio que o mundo é isento de sobrenatural, ou mesmo, que o sobrenatural não existe. Repete-se aqui o que falamos sobre “Deus”: pouco importa se o sobrenatural existe ou não, se queremos nos aproximar da verdade, que está no todo, teremos necessariamente de enfrentar o óbvio, por trás do qual possivelmente tal verdade se esconda e admitir, ao menos como hipótese, que o mundo seja governado por forças que residem alhures. Lembraremos o leitor disso, quando for a hora.
Em terceiro lugar, e também tem relação com os dois primeiros (pois nas imediações da verdade tudo tem relação com tudo), em ciência não cabem argumentos morais (a “razoabilidade” é uma consideração moral). Ou seja, se eu estabeleço hierarquias, de certo e errado, eu tenho de ter um modo de diminuir ou descartar juízos, culturas, crenças, modos de vida. O modo de fazer isso sempre é algum tipo de moral, ou seja, sempre devo julgar certo algo, e errado outro algo, mas quando faço isso me afasto do todo, onde reside a “verdade”. Por exemplo, no caso das religiões monoteístas, não convém nem descartar os relatos por julgá-los falsos, nem considerá-los certos por serem “a palavra de Deus”, pois ambos os posicionamentos nos afastam da posição adequada de admiração ante o desconhecido, posição adequada se buscamos com sinceridade a verdade. Ademais, não há nada nos relatos que garanta que sejam expressão da verdade, nem que sejam mera invenção ou fantasia, a não ser que adotemos algum tipo de posição dogmática. Comparar os relatos com o que observamos cotidianamente e, em função disso, descartá-los, por não serem razoáveis, descarta junto a hipótese fundamental de que talvez nosso cotidiano mantenha oculta a essência. Como já dissemos, pouco importa se as crenças que embasam as religiões sejam reais ou não, ao que tudo indica nenhuma delas vai desaparecer, nem as pessoas vão mudar de ideia quanto a isso, de modo que o que podemos fazer inicialmente é tentar compreender o sentido de cada uma das partes e o sentido de todas elas em seu conjunto. Para fazer isso, imaginemos que as três religiões tenham sido fomentadas por uma força sobrenatural que ora se chamou Javé, ora Alá, ora simplesmente “Deus”, que no presente artigo adotamos como hipótese.
Para fazer isso, passemos agora a um relato resumido das três religiões. O judaísmo, apesar de se reportar ao aparecimento do ser humano no Jardim do Eden, depois à extinção do mundo e seu recomeço em Noé, depois a um chamamento de “Deus” a Abraão, que vivia em Ur, na Caldéia, uma região hoje pertencente ao Iraque, depois a uma decisiva interação em Jacó, o qual lutou com um “Deus” um tanto sanguinário que o feriu no quadril e mudou seu nome para Israel, teve uma importante inflexão em Moises, por muitos considerado o criador do judaísmo. Moises era filho de uma mulher judia escravizada no Egito, para onde os judeus haviam ido seguindo José, filho de Jacó, que fora vendido como escravo pelos próprios irmãos, mas tornou-se o braço direito do faraó. A mãe de Moises o abandonou num cesto no Rio Nilo para salvá-lo da matança de bebes judeus do sexo masculino operada pelo faraó, em vista do povo judeu escravizado estar crescendo e se fortalecendo, pondo nos egípcios medo de uma rebelião. O bebê acabou sendo recolhido pela irmã do faraó que o criou como um egípcio, mas ele sempre soube ou desconfiou que era judeu. Em face de ter sido condenado à morte pelo faraó, por ter matado um egípcio que estava agredindo judeus, Moisés fugiu para o deserto onde foi atraído ao Monte Horebe, ou Sinai, onde Javé o orientou a voltar ao Egito e solicitar ao faraó a libertação do povo judeu. Depois de muitas tentativas, tendo “Deus” afligido o faraó e o Egito com as 7 pragas, os judeus conseguiram fugir e após um longo tempo de privações, peregrinando pelo deserto, conquistaram a Terra Prometida, hoje chamada Palestina, tendo aí se instalado, eliminando os povos existentes. O domínio mais completo e efetivo dos judeus na atual Palestina somente se completou em Davi, cujo filho, Salomão, foi a consolidação e o ápice dessa ascensão. Depois dele e incluindo a ele, os reis se desvirtuaram e sucessivamente os judeus foram castigados por Javé, sendo que para sempre a partir daí e até os dias de hoje, os judeus esperam a vinda de um outro “Davi”, o governante perfeito, que saiba aliar a orientação de “Deus” com a luta política. Esse é o significado da espera pelo “Messias”, o ungido de “Deus”, que deve retornar para chefiar os exércitos e livrar os judeus de seus perseguidores.
Jesus surgiu justamente num contexto inerente à espera pelo Messias. Mas a orientação que Jesus recebeu de “Deus” já não era exatamente a mesma. Ao contrário de impor uma conduta pura e fechada ao mundo, exclusiva para os judeus, “Deus” agora orientou a relativizar o pecado e “amar a Deus sobre todas as coisas o ao próximo como a si mesmo”. O Messias que surgiu não era um líder dos exércitos, mas um pregador da paz, cujo reino não era deste mundo. Pela sua tortura, morte e ressurreição, foi fundada uma igreja que se expandiu notadamente para o seu ocidente geográfico, inicialmente por orientação do próprio Jesus ressuscitado e pelo “Espírito Santo”[1], mais tarde por eventos milagrosos, como os inerentes aos santos e santas da cristandade e às aparições da “Virgem Maria” ou “Nossa Senhora”, mãe de Jesus.
Normalmente costumamos pensar que o cristianismo se originou do judaísmo. Isso é verdade, mas não foi bem assim, o correto é dizer que o judaísmo de hoje e o cristianismo surgiram mais ou menos ao mesmo tempo como resultado da divisão do antigo judaísmo, divisão essa que começou ainda em Moises, por orientação do próprio “Deus”. Moises tinha dificuldade com as palavras – ou por algum problema de gagueira ou dicção, ou por acanhamento, ou por sua língua mãe não ser a mesma dos judeus. Por isso “Deus” disse a ele que essa parte da oratória e dos procedimentos minuciosos ficaria com seu irmão, Aarão, o qual “Deus” enviou do Egito para encontrar Moises no Monte Horebe, de onde os dois retornaram ao Egito e convenceram os judeus a tentar se libertar do cativeiro e ir em direção à Terra Prometida. A partir daquele momento os descendentes de Aarão formaram os Levitas, encarregados da oratória e da parte religiosa e Moises se constituiu no líder popular, que estava mais ligado ao povo, na sua diversidade, tão próxima do “pecado”. Por isso ao final Moises foi castigado por “Deus” [2] e não pode entrar na Terra Prometida, vindo a morrer quando o seu papel se cumpriu, sendo sucedido por Josué, mais adequado à conquista pela espada, e a partir daí a história dos judeus foi sempre essa oposição entre a santidade (e hipocrisia) dos “puros”, levitas, sacerdotes, doutores da Lei, saduceus, fariseus, contra o pecado do povo, que vivia o difícil mundo real. Entre o povo e a elite sacerdotal, que era ao mesmo tempo dirigente e que se corrompia pela decorrência do tempo, os profetas renovavam a aliança com “Deus”, investindo contra o poder constituído do próprio judaísmo, o que os fez serem perseguidos e mortos. Na visão da Torá, os judeus foram sucessivamente castigados por “Deus” por descumprirem a aliança com “Ele”. Nos tempos de Jesus esses dois lados do judaísmo atingiram o ponto de separação, e algum tempo depois de sua crucificação, por ocasião da Guerra contra Roma e a expulsão dos judeus da Palestina, judeus e cristãos se separaram definitivamente, formando duas religiões. A primeira, ficou fechada em si, no “povo das escrituras” (segundo Maomé) e a segunda se abriu ao mundo, mas não a todo ele, ela se alastrou principalmente para o ocidente geográfico daquele mundo, por orientação do próprio “Espírito Santo”, com já citado.
Aproximadamente 500 anos depois, na península arábica, uma região de beduínos, Maomé, um árabe ligado ao comércio, de formação bastante simples e que seguia o Deus único em uma Meca ainda politeísta, foi visitado enquanto fazia um retiro em uma caverna pelo anjo Gabriel, que o orientou a recitar e pregar pelo deus único. Sua pregação foi recepcionada inicialmente por sua família, mas veio a crescer, colidindo com os comerciantes influentes de sua época, por isso ele teve de fugir de Meca para uma região que por algum tempo se tornou sua cidade, Medina. Lá Maomé conheceu alguns judeus que inicialmente acolheram suas revelações, mas logo depois se separaram dele por perceberem colisões com sua doutrina. Com o crescimento do islamismo, Maomé, com seus exércitos, acabou retornando e tomando Meca, a qual se tornou a cidade sagrada por excelência do Islã.
Maomé se via como o último tijolo na construção do edifício do monoteísmo. Alá (que em árabe quer dizer Deus) possivelmente disse isso a ele na medida em que o orientava a converter o mundo todo, repetindo “eu sou o deus único e Maomé o meu profeta”. Ou seja, Maomé interpretava, da orientação que recebia de Alá, que o monoteísmo havia se desvirtuado, de modo que “Deus” escolheu Maomé para colocar o monoteísmo de volta ao seu trilho, lembrando judeus e cristãos da aliança com “Ele”, que os obrigava à submissão (em árabe a palavra islã quer dizer submissão). Maomé não se pensava contra as religiões existentes, mas sim incluído nelas. Mas logo em suas primeiras tentativas ele percebeu que elas não o acolheriam. Teria discutido isso com Alá, que ao final o orientou a tentar converter o mundo ao islã, independentemente da concordância ou não de cristãos e judeus. Para isso, Maomé deveria tentar converter por argumentos, mas se esses não fossem suficientes, deveria usar a força. Maomé pessoalmente não era propenso ao uso da força, certamente ele preferiria que tivesse sido diferente, mas Alá tinha seus planos. De modo que quando Maomé cumpriu sua missão, outros, mais adequados a uma nova etapa, assumiram o comando. Assim como Moises, tão logo cumpriu sua missão, Maomé morreu ainda relativamente jovem, sendo sucedido por chefes de exércitos, ligados à corrente majoritária, os sunitas (ficando a parte pura e minoritária, os xiitas, ligada por linha de sangue a Maomé, restrita a pequenos círculos fechados) que passaram a expandir o islamismo num misto de convencimento e força. Mais recentemente, os xiitas obtiveram sucesso a partir da Revolução Iraniana de 1979, liderada pelo Aiatolá Khomeini, e se encontram no poder no Irã até hoje, como uma espécie de exposição da raiz do Islã, um aspecto fundamental a considerar se queremos compreender a questão. Voltaremos ao assunto adiante neste mesmo artigo.
Por ora, é importante aqui ver de onde se originou a crença do deus único em Maomé. Na verdade Meca possuía um templo, a “Caba”, pois tinha o formato de cubo, onde se reverenciavam todos os deuses, inclusive o deus único que presumivelmente fora trazido desde o surgimento dos próprios árabes, em Ismael, filho de Abraão com sua escrava Agar. A mesma Bíblia de cristãos e judeus narra que Abraão não conseguia ter filhos com sua esposa Sara, que o aconselhou a tê-lo com sua escrava Agar, irmã do faraó que acompanhou Abraão quando ele deixou o Egito, depois de para lá ter ido em busca de alimentos num momento de escassez na Palestina, que ainda não se chamava Palestina. Agar provavelmente se apaixonou por Abraão, mas também seguiu o conselho de seu irmão, o faraó, que disse ser melhor para ela ser escrava num povo que venerava o deus único do que ser irmã do faraó numa sociedade perdida num confuso e impotente politeísmo. Tão logo Ismael nasceu, Sara o adotou como filho, mas depois “Deus” disse a eles que ela teria um filho de Abraão, o que causou espanto a ambos, já que estavam velhos. Sara inclusive ironizou dizendo “será que ainda vou sentir paixão por esse meu velho homem”? Mas “Deus” não gostou muito do comentário de Sara: como ele disse diversas vezes, ele era um deus possessivo e ciumento e não gostava que duvidassem de sua palavra.
De fato, Sara teve um filho de Abraão, o qual veio a se chamar Isaac, tendo sido criado junto com Ismael, naquela altura já um garoto. À medida que Isaac crescia, Sara passou a se preocupar com a possibilidade de Ismael vir a ocupar o lugar de sucessor de Abraão no lugar de seu filho predileto, Isaac, e pediu para seu marido “se livrar” de Ismael, junto com sua mãe Agar. Abraão gostava de Ismael e possivelmente também de Agar. Se queixou a “Deus”, que lhe disse que Sara tinha razão, mas ele não devia matar Ismael e sua mãe, apenas abandoná-los em algum lugar distante, pois Ismael seria o patriarca de um grande povo, muito valoroso, mas meio “tosco” ou “cascudo”. Sara e Ismael foram deixados no deserto em algum ponto entre a Palestina e o Egito, onde Ismael cavou um poço na areia que fez com que o local virasse um oásis. Beduínos que passavam os recolheram (ou se juntaram a eles), sendo que um deles se casou com Agar, (que pelo visto não era nada horrível). De modo que de Ismael teria se originado uma série de povos, entre os quais os árabes que vieram a se fixar na península arábica, onde nasceu e viveu Maomé. O deus único que Maomé seguia era então o mesmo dos judeus e cristãos, com a diferença de que entre os árabes o monoteísmo não era reprimido até aquele momento e “Deus” era venerado no mesmo templo dos demais deuses até que surgiu Maomé, para colocar o último tijolo na construção do monoteísmo abraâmico. Lembremos aqui que também entre os judeus o politeísmo resistiu por muitos séculos, sendo uma das causas principais dos castigos impostos por “Deus” aos judeus.
Se nós concedemos status de realidade aos relatos das religiões, a primeira coisa a perguntar é: afinal, por que “Deus” teria fomentado três religiões aparentemente diversas, mas as enredou de tal forma a serem motivo de disputas sem fim? Sangrentas disputas, as quais são a regra e não a exceção nos relatos bíblicos. Como disse Saramago, provavelmente se referindo a isso, “só mesmo Deus para ser tão sanguinário”. Mas vejam, essa colocação de Saramago, se tomada como uma crença real de sua parte, configura um argumento moral. A vida é sangrenta, a história é sangrenta, o ser humano deseja acabar com isso, o com a própria morte, mas será que ele pode? Talvez ele possa, se ele “compreender”. Para isso, tentemos tomar os relatos de um ponto de vista não moral, ou extra moral. Neste caso, poderemos ver que as três partes vieram de uma mesma fonte, “Deus”, e possivelmente ele tensione algo, que desconhecemos. Para ter uma ideia sobre o que tensiona “Deus”, devemos procurar – como fazia a alquimia dos antigos e ainda faz a sua filha, a ciência – eventos semelhantes no mundo, eventos que conhecemos, para tentar descobrir aquilo que desconhecemos. O que dizem as três religiões? Que querem um mundo novo, ao abrigo da corrupção e da morte. E será que conhecemos eventos semelhantes a esse, onde três partes compõe um todo que parecem querer nos levar para algo novo? É claro que conhecemos, inclusive, me referi a isso no último artigo “O que fazer? Pergunte à física quântica”. Essas três partes se assemelham a um ovo posto por “Deus” no mundo. Neste caso, se representantes escolhidos das três religiões hipoteticamente encontrassem “Deus”, eles poderiam com justiça perguntar: “Deus” meu velho, por que afinal você nos deu três orientações diferentes? Por acaso você se diverte em nos ver brigar? Ao que “Deus” hipoteticamente responderia (entre várias outras alternativas): meus queridos, eu vos amo, ocorre que neste particular aqui trazido à minha consideração, minha preocupação não é específica e diretamente com vocês, mas com o ovo posto por mim no mundo, diga-se de passagem, um ovo por mim galado. No entanto, não fiquem assim tão preocupados com suas respectivas individualidades, no final tudo vai subsumir numa realidade nova, assim como, para que nasça um pássaro, subsomem gema, clara e casca. E nesta realidade nova, acreditem homens de pouca fé, vocês estão incluídos, como tudo o mais. Aqui “Deus” parou de falar, agora sou eu: vejam, isso é uma hipótese.
Parafraseando Sócrates, quando falou em sua própria defesa, “por favor, caros leitores, não vos amotineis!” Ou seja, não desistam da ideia apresentada por parecer estapafúrdia. Lembrem que falamos linhas atrás que precisamos enfrentar o óbvio, o natural, o razoável se queremos nos aproximar do lugar da verdade, que está no todo. As ideias novas sempre nos parecem estapafúrdias, pois fomos acostumados por gerações às ideias antigas e a elas nos aferramos[3]. Ademais, relembremos, a ciência não precisa compreender o seu objeto (Kant), apenas prever os acontecimentos. Também, como disse Popper, a ciência deve poder ser falsificada, o que significa, entre outras coisas, que quanto mais estapafúrdia e menos óbvia a hipótese for, mais será ciência, se puder nos auxiliar a lidar com aquilo que desconhecemos. Então, teremos de ver se a ideia apresentada – que as três religiões monoteístas foram induzidas por forças sobrenaturais, que no presente artigo designamos por “Deus”, com a intenção de criar algo novo no mundo – serve para nos esclarecer nesta complexa questão que se arrasta por séculos e parece estar longe de ser resolvida.
Vejam, primeiramente, segundo nossa hipótese, nem judeus, nem cristãos, nem muçulmanos, existem e são do jeito que são (o que é o mesmo) por decisão pessoal. Todos eles nascem de outros judeus cristãos e muçulmanos, assim como uma laranja, uma banana ou um abacate nascem de uma laranjeira, de uma bananeira e de um abacateiro. Se eu não gosto de laranjas, de bananas ou de abacates, OK, mas não posso esperar que sejam diferentes do que são. Se eu digo que os judeus deveriam ser assim ou assado, na verdade eu estou dizendo que eu preferiria que não existissem judeus, o mesmo vale para cristãos e muçulmanos. Então, seguindo nossa hipótese, quando Marx na Questão Judaica criticou os judeus por só pensarem em sua própria libertação, dizendo que sua libertação coincide com a libertação de todos os seres humanos, pois o judeu é um ser humano, em parte ele está certo, mas tal pensamento é antissemita. Por que, em nossa hipótese, um judeu – assim como um cristão ou um muçulmano – foi feito por “Deus” em vista de um fim, que ainda não chegou.
De modo que é muito importante que tenhamos clareza quanto à questão de em que consiste ser judeu, cristão ou muçulmano. Vejam, cada uma dessas três religiões custou sangue para ser formada e uma vez formada não é apenas negando conteúdo a suas respectivas crenças que vamos resolver o problema. Os judeus vão continuar criando judeus, os cristãos, criando cristãos e os muçulmano, muçulmanos. E como são cada um deles? Os judeus são fechados em si a espera de sua redenção, não pretendem converter nem colonizar ninguém, apenas querem existir, por que assim foram feitos. Os cristãos são abertos ao mundo, principalmente ocidental, mas não se fie muito em suas palavras, pois eles nem sempre fazem o que dizem, como o Ocidente. Os muçulmanos, por seu turno, foram constituídos para converter o mundo ao Deus único, pelo bem ou pelo mal, e assim todos eles continuarão a ser até que cheguem os seus respectivos fins, que em nossa hipótese será o mesmo.
Voltemos agora à questão da “raiz do Islã”, deixada em aberto linhas atrás. É importante aqui perceber que cada uma das três religiões monoteístas é em sim um organismo vivo, assim como é uma árvore. Portanto, todas elas têm raiz, tronco, ramos, folhas, flores e frutos. Então, quando dizemos que não podemos culpar os cristãos pelos crimes da Igreja ou os israelenses pela ação de Netanyahu, ou os muçulmanos pela ação de grupos “radicais” como o Hamas o Hezbollah, isso não é de todo verdade. O grupo radical reside na raiz, mas não existe árvore sem raiz. Ou seja, o muçulmano, “lá no fundo”, concorda com o Hamas e o Hezbollah, pois, “lá no fundo”, sua cultura se funda no dever de converter o mundo ao “Deus” único. Nesta perspectiva, tudo que não é islã é infiel. Da mesma forma, Netanyahu tem a concordância da maioria dos israelenses, caso contrário ele já teria caído. Pois o judeu, pelo modo como “Deus” o constituiu, é diferente do mundo, portanto, o mundo o agride desde sempre. Qualquer judeu sente isso e sabe disso, mesmo que ele seja ateu. Então, Netanyahu age como os israelenses “lá no fundo” querem, mesmo que não digam claramente. Por fim, os cristãos podem manifestar horror aos “crimes da Igreja”, mas, possivelmente, em seu lugar fariam o mesmo. Pois tudo o que a Igreja fez, ela não fez por decisão arbitrária, mas induzida por uma necessidade histórica de uma sociedade que expulsou o sobrenatural do mundo. E quando ela e o Ocidente falam em amor e fraternidade, mas não agem de acordo, é porque eles não sabem, ainda, como entregar o que prometem, mas nem por isso podem deixar de prometer, como uma esperança. O que falta é as três religiões monoteístas se reconhecerem como parte de um todo, de modo que cada uma não pode obter sucesso sozinha, mas apenas em conjunto com as demais partes.
O que tal ideia ensejaria no concreto da história e dos acontecimentos? Em primeiro lugar, cabe ao Ocidente cristão implementar uma ação de apaziguamento, pois ele está no meio e ele é o mundo em constante mutação onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”. Ou seja, se gema e casca se batem, e expõe suas raízes, é por que falta clara. Mas esse apaziguamento deve se dar mediante a compreensão do sentido de cada parte, longe de argumentos morais e infantis. É preciso que o Ocidente cristão reconheça o Islã como a continuação da própria mensagem, vida e morte de Jesus, pois esta é uma questão religiosa, antes de mais nada. É preciso que os judeus sejam definitivamente reconhecidos em seu direito de serem diferentes e fechados em si mesmos, pois isso também tem um sentido: uma semente somente se abre quando chega a hora. É preciso que o Ocidente cristão seja compreendido como aquele passo intermediário antes da realização de algo, por isso a “falsidade”. É preciso que o ímpeto do islã por converter o mundo seja recepcionado como uma coisa necessária em vista do atingimento de um fim. Porém, é preciso que as três religiões entendam que as mensagens recebidas foram em outro momento, portanto, elas devem ser reinterpretadas.
A promessa de Jesus ao ser humano é o cerne da felicidade, pois ser feliz é viver e não existe felicidade mediante a existência da morte. Mas vejam, Jesus também não nasceu de um ovo chocado ao sol, assim como o próprio Ocidente, que é predominantemente cristão. Eles foram desejados e preparados pelos mundos que os antecederam, com suas religiões e crenças. Por isso mesmo, esse “novo mundo” que surgiu à ocidente do mundo antigo, constituído sobre uma duplicidade racional-fundamentalista, magnetizou o planeta com suas promessas de “vida em abundância”, mesmo que ainda não integralmente cumpridas. Então, converter o mundo ao Deus único significa convencer a maior parte do mundo de que talvez haja um caminho possível para a realização desta mais louca utopia humana: a possibilidade de viver eternamente, mais que isso, a possibilidade de trazer de volta do pó tudo o que já existiu. Não lhe parece estapafúrdia essa possibilidade, caro leitor? Sim sim, ela é estapafúrdia, o que não significa que não possa vir a ocorrer. E independentemente de vir ou não a ocorrer, se agirmos como se essa possibilidade existisse, apaziguaremos o mundo. Ademais, somente se formos até o fim poderemos descobrir se existe algo a descobrir, ou não, levando por esse lado também ao apaziguamento. E não será por não olhar de olhos abertos para isso e para seus próprios desejos, que igualmente não foram escolhidos por ele, que o ser humano vive em guerra? E adiantará negar nossos próprios desejos por parecerem impossíveis de realizar em sua totalidade? Quem sabe o possível e o impossível, possivelmente, seja nosso hipotético “Deus”, mas nem sabemos se ele existe e, no caso de existir, em que consiste. Voltamos ao ponto de partida.
A humanidade tem estado girando em torno deste ponto de partida quiçá desde que surgiu na face da terra, sem conseguir sair dele, a prova disso é a existência das religiões. Isso é porque a saída desse ponto de partida não é algo que se possa fazer especulativamente, mas sim demanda uma práxis, uma ação, da qual ainda não temos “ciência”. Contudo, esta ação deve se dar fora de qualquer consideração moral que exclua qualquer coisa, por inadequada, ela deve se dar de modo a abarcar tudo. Por isso mesmo, ela não é uma ação cega, baseada no dogma ou na fé, ela deve resultar de uma reflexão que compreenda o todo. É possível que uma ação implementada sobre essa premissa possa nos levar a descobrir um mundo que desconhecemos, pois temos sérias razões para pensar que a razão presente nos ilude, que o mundo que ela descreve não é o mundo real, mas uma redução do mesmo. Nesta linha, é possível que a humanidade detenha um poder latente que desconhece, e que se revelará quando chegar a hora. Compreender tudo de modo a nos aproximarmos do lugar da verdade é o modo humano possível de fazer essa hora chegar. Neste sentido, afinal de contas, só a reflexão (e não um Deus) pode nos salvar[4].
[1] “E, passando pela Frígia e pela província da Galácia, foram impedidos pelo Espírito Santo de anunciar a Palavra na Ásia.” (Atos 16:6) .
[2] Em Moises e o Monoteísmo, Freud dá outra interpretação para a morte de Moises (para Freud um sacerdote egípcio seguidor do faraó Akhenaton), que teria ocorrido cumprindo mecanismos descritos em Totem e Tabu, quando os filhos cometem o parricídio fundador de um grupo humano.
[3] Sócrates tentou desfazer o Sócrates falso na cabeça dos jurados, mas enfim, ele foi condenado pela maioria a tomar cicuta. E talvez nem ouvíssemos falar dele se isso não tivesse acontecido. Ou seja, Sócrates foi mais um que morreu quando cumpriu seu papel. Não tenhamos pressa em cumprir os nossos.
[4] “Só um Deus pode nos salvar” (Heidegger)
*João Batista Mezzomo, possui graduação em Filosofia pela pontifícia universidade católica (2003) e graduação em engenharia elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1983). Atualmente é quadro permanente – Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul e formado em Economia pela UFRGS.
Imagem de capa: Montagem a partir de imagens disponíveis em: <https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolos-religiosos/> acesso em 01, mar. 2022
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Toque novamente para sair.