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As raízes históricas do Sul Global

As raízes históricas do Sul Global

Artigo por RED
26/09/2024 09:00 • Atualizado em 25/09/2024 15:26
As raízes históricas do Sul Global

Por Wagner Sousa*

O texto a seguir integra a edição nº 7 (setembro de 2024) do boletim do Observatório do Século XXI. A publicação, na íntegra, pode ser lida ou baixada aqui.

As sanções impostas pelos Estados Unidos e seus aliados à Rússia, após a invasão da Ucrânia, visavam isolar o país e provocar uma crise econômica sem precedentes, que inviabilizasse o esforço de guerra. Como se sabe, as sanções fracassaram em seu intento. A Rússia vem conseguindo driblar estas restrições em cooperação com outros países, fora da órbita de aliados mais próximos dos Estados Unidos. Isto permite a continuidade de suas ações na Ucrânia. Após um declínio inicial, fruto das sanções, a economia russa voltou a crescer. Muitos países tem colaborado com a Rússia, comprando petróleo e gás, caso de China e Índia, vendendo armamentos, caso do Irã, e atuando em “triangulações”, importando bens do Ocidente, como chips, que depois clandestinamente são revendidos aos russos, como já o fizeram Cazaquistão, Chipre e vários outros. O Brasil é um importante importador de óleo diesel do país. Outro aspecto a se destacar é que também fracassou a tentativa dos Estados Unidos e seus aliados europeus da OTAN de isolar politicamente a Rússia em nível mundial. O chamado “Sul Global” não aderiu às sanções, não apoia o esforço de guerra ucraniano, bancado basicamente pela OTAN e, mesmo que muitos tenham votado em sessões da ONU condenando a invasão russa, não tem manifestado, em suas posições como países individualmente, discursos frequentes de condenação à invasão, o que representa uma leitura geopolítica que perpassa esses países, de que se trata de uma proxy war, e que a Ucrânia, mesmo que tenha seus interesses nacionais em jogo, atua como peão do Ocidente em uma guerra contra a Rússia.

O que se entende como “Sul Global” não obedece exatamente à geografia, pois abarca países do sul e do norte do planeta, abrangendo América Latina, África, Ásia e países insulares assim como “Norte Global” abrange também  Austrália e Nova Zelândia. Contudo ambos são conceitos válidos para o campo da Geopolítica. A ideia de Sul Global deriva do chamado Movimento dos Não-Alinhados e do G-77 das Nações Unidas, grupos que advogavam não seguir nem o bloco dos países capitalistas desenvolvidos, o “Primeiro Mundo”, liderado pelos EUA, nem o bloco socialista, liderado pela URSS, o “Segundo Mundo”. Sarang Shidore, Diretor do Programa de Sul Global do Quincy Institute for Responible Statecraft e membro adjunto da George Washington University lembra, no artigo “The Return of the Global South”, publicado em 2023, em Foreign Affairs, que estas nações, a vasta maioria da humanidade, foram denominadas como “Terceiro Mundo” como consequência do aumento, com o processo de descolonização, do número de países, no imediato pós-II Guerra Mundial, que chegaram a 70, já nos anos 1940. Esta nomenclatura específica começou a ser utilizada propriamente a partir de um artigo publicado pelo cientista social francês, Alfred Sauvy, que cunhou este termo para se referir a estes países. Sauvy fez um paralelo entre as exploradas colônias recém independentes e o “Terceiro Estado” da França pré-revolucionária.

Explica Shidore que, com o tempo, “Terceiro Mundo” foi ganhando conotação pejorativa para os países pobres; “países em desenvolvimento”, termo em destaque por décadas, foi sendo criticado pela ideia linear de “um caminho para se tornar desenvolvido.” O autor, no artigo supracitado, diz que Sul Global “(…) tem suas origens no século vinte. O termo foi usado no conhecido relatório de 1980 North-South: A Programee for Survival criado pelo comitê independente liderado pelo Ex-Chanceler alemão Willy Brandt e pelo relatório de 1990 The Challenge to the South: the Report of the South Comission produzido por painel das Nações Unidas liderado por Julius Nyerere, o então presidente da Tanzânia. O prefixo ‘global’ foi adicionado nos anos 1990, depois do fim da Guerra Fria, possivelmente um subproduto da crescente popularidade de outro termo, ‘globalização’, que entrou em voga na época.”

A partir do início dos anos 1990, com a reunificação da Alemanha e o fim da URSS, com o fim, portanto, do bloco socialista, o “Segundo Mundo” deixou de existir e se afirmou, nesta década, a hegemonia “unipolar” dos EUA. Como consequência o liberalismo econômico voltou com força, as fronteiras (para o capital, essencialmente) deveriam ser abertas e esta integração deveria (pela propaganda, ao menos) reduzir as assimetrias entre as nações. Isto não ocorreu para a maioria dos países do Sul Global.

As consequências das crises desencadeadas por este liberalismo na década de 1990, especialmente, e o deslocamento crescente do eixo econômico mundial para a Ásia, com a China se tornando o principal parceiro comercial da maior parte dos países e o mundo vivendo um ciclo crescimento generalizado na década de 2000 (até o estouro da crise imobiliária americana, em 2008) mudaram as políticas de muitos países que passaram a adotar, em muitos casos, uma espécie de “protecionismo seletivo” e incentivo a certos setores, como citado por Shidore “(…) nos últimos anos Indonésia e Zimbabwe passaram a restringir as exportações de níquel e lítio, respectivamente, com o intuito de atrair maiores investimentos do exterior. A nova política para o lítio do Chile inclui um papel muito maior para o Estado na mineração e industrialização. Algo similar ocorre na iniciativa saudita para criação de uma indústria de hidrogênio verde e no objetivo da Índia de atrair indústrias de manufaturados eletrônicos. A ideologia cedeu lugar a uma experimentação com modelos econômicos híbridos.”

É importante destacar que especialmente a ascensão chinesa, puxando o crescimento de grande parte do Sul Global (e também de países do Norte Global, como a exportadora Alemanha) diminuiu a dependência econômica em relação aos Estados Unidos e à Europa, reduzindo, portanto, a capacidade de pressão em temas como a Guerra da Ucrânia. Essa maior “autonomia relativa” alimenta também as demandas por reformas nas instituições internacionais, as quais mantém uma distribuição de poder que pouco mudou desde sua criação, fator de grande insatisfação para a maioria dos Estados.

Embora não estejam no núcleo de poder do sistema internacional, os países do Sul Global, organizados em fóruns como o BRICS e a Organização para a Cooperação de Xangai ou organizações como a União Africana e numa miríade de pactos e tratos bilaterais, como, por exemplo, os acordos de comércio em moeda local, para escapar ao predomínio do dólar, se colocam, em toda a sua heterogeneidade de médias potências e países pobres, numa posição de contestação da ordem internacional liderada pelos EUA e seus aliados próximos. E o fazem, com postura realista, operando com os recursos que possuem, num contexto em que são beneficiados pelas mudanças na arquitetura de poder internacional.

Foto: Reprodução

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