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APRENDENDO COM UM DESASTRE CLIMÁTICO: AS ENCHENTES CATASTRÓFICAS NO SUL DO BRASIL
APRENDENDO COM UM DESASTRE CLIMÁTICO: AS ENCHENTES CATASTRÓFICAS NO SUL DO BRASIL
Por VALÉRIO D. PILLAR E GERHARD E. OVERBECK*
Pesquisadores alertam que esforços para conter as mudanças climáticas precisam ser globais e rápidos
As enchentes catastróficas que afetaram o Sul do Brasil em maio passado devem servir como um alerta para as sociedades humanas de que, apesar do ceticismo ou negação das mudanças climáticas ainda amplamente difundidos, a mitigação e adaptação para lidar com a crise climática em andamento são urgentemente necessárias. O saldo foi de 213 pessoas mortas ou desaparecidas, 2,4 milhões de pessoas afetadas, incluindo 600.000 deslocadas, e perdas sem precedentes em infraestrutura urbana e rural, incluindo criações.
Essas perdas poderiam ter sido menores se medidas de adaptação tivessem sido implementadas, como tem sido repetidamente recomendado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Tendo testemunhado a catástrofe em primeira mão, aqui destacamos medidas de adaptação baseadas na natureza que poderiam fornecer resistência e resiliência contra eventos climáticos extremos.
Chuvas extremamente intensas resultaram em uma precipitação acumulada de 652 mm (até 900 mm em algumas áreas) ao longo de 35 dias, com 444 mm caindo apenas nos oito dias anteriores ao pico da enchente – quantidades normalmente esperadas ao longo de cerca de meio ano – nas bacias hidrográficas de 8,4 milhões de hectares que formam o delta do rio Jacuí e o lago Guaíba, onde se encontra a Região Metropolitana de Porto Alegre. Essa precipitação extrema, ligada a frentes frias bloqueadas sobre o Sul do Brasil, seguiu-se a um clima anormalmente úmido nos seis meses anteriores devido a um forte evento de Oscilação Sul El Niño.
Como consequência, uma forte erosão do solo afetou as regiões de agricultura intensiva estabelecidas nos solos vermelhos e profundos que caracterizam as nascentes do norte das bacias hidrográficas. Imagens de satélite do início de maio mostraram uma cor laranja forte nas águas das enchentes antes de descerem para os vales da Serra Geral, onde sedimentos adicionais atingiram os rios devido a numerosos deslizamentos de terra nas encostas íngremes e levaram por diante o solo de áreas agrícolas ao longo dos vales inferiores.
No auge da enchente, as áreas baixas da Região Metropolitana de Porto Alegre foram inundadas. A cidade de Porto Alegre estaria supostamente protegida por um sistema de proteção contra enchentes, composto por diques, muros, portões e bombas construídos na década de 1970, o que deu à população da cidade uma sensação de segurança. Esse sistema falhou principalmente devido à negligência na manutenção de rotina dos portões e bombas pela administração municipal. Como consequência, as partes baixas da cidade, uma capital estadual com uma população de 1,3 milhão, foram inundadas pelo sistema de drenagem. Isso causou uma reação em cadeia que levou ao colapso do fornecimento de eletricidade em partes da cidade e das estações de abastecimento de água potável em grande parte da cidade, incluindo áreas não inundadas.
Um dos maiores hospitais da cidade teve que ser evacuado, o terminal rodoviário regional foi inundado e todas as vias de acesso terrestre à cidade, exceto uma, foram interrompidas. Esta situação durou cerca de três semanas. O principal aeroporto que atende Porto Alegre e o estado permaneceu inundado por um mês e espera-se que retorne à plena funcionalidade apenas próximo ao final do ano. Recuperar essas perdas custará muito mais do que se medidas de adaptação tivessem sido implementadas.
Modelos climáticos preveem um aumento na frequência e intensidade de eventos extremos de precipitação para esta região, causando inundações e secas. Medidas de adaptação para lidar com esses eventos extremos são urgentes. Aqui, focamos em adaptações baseadas na natureza, envolvendo restrições de uso da terra em toda a bacia hidrográfica.
Destacamos que a adaptação é necessária em escalas espaciais e deve incluir toda a bacia hidrográfica, não apenas ao longo dos rios. Soluções baseadas na natureza, como proteger as florestas nativas remanescentes e a vegetação não florestal, e adotar práticas agrícolas que conservem o solo e a biodiversidade nas áreas cultivadas, podem reduzir o impacto dos eventos extremos, apesar das dificuldades na avaliação de sua eficácia. Menos erosão do solo reduz a quantidade de sedimentos em suspensão nas águas das enchentes.
Além disso, reter a água a montante por um período mais longo pode evitar que as estruturas de proteção a jusante, como os diques que deveriam proteger Porto Alegre, sejam sobrecarregadas se a precipitação for mais intensa do que agora. A restauração da vegetação nativa é um processo lento, mas crucial para proteger o solo e as margens dos rios. Felizmente, grande parte das encostas íngremes da Serra Geral, que eram áreas agrícolas até cerca de quatro décadas atrás, agora têm florestas em regeneração (Mata Atlântica).
No entanto, também é essencial restaurar a vegetação campestre que originalmente cobria os solos vermelhos do alto rio Jacuí e do alto rio Taquari. É importante destacar que a manutenção ou restauração de ecossistemas das várzeas também reduz a vulnerabilidade humana, pois decisões inadequadas de uso da terra no passado contribuíram significativamente para a gravidade dessa catástrofe.
Como demonstrado pela iniciativa de mapeamento de uso/cobertura da terra MapBiomas, entre 1985 e 2022, 1,36 milhão de hectares de vegetação nativa, incluindo 1,1 milhão de hectares de campos nativos, foram perdidos para a agricultura e outros tipos mais intensivos de uso da terra nas nove bacias hidrográficas que formam o lago Guaíba. A floresta nativa e a vegetação não florestal (campos, áreas úmidas) protegem o solo da erosão e contribuem para a atenuação das enchentes ao desacelerar o escoamento superficial da água da chuva.
A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), a principal lei do Brasil para a conservação da natureza, obriga os proprietários de terra a designar 20% de sua propriedade para a manutenção da vegetação nativa na chamada Reserva Legal. Além disso, as Áreas de Preservação Permanente, também com vegetação nativa, são obrigatórias nas margens dos rios, em encostas íngremes e no topo de morros e montanhas. No entanto, ambos os instrumentos sofrem com problemas de implementação, o que reduz a proteção e leva a uma maior vulnerabilidade e impactos. Se essas áreas tivessem sido protegidas ou restauradas, elas teriam retido as águas a montante e transbordado nas planícies de inundação por um período mais longo, reduzindo os impactos catastróficos a jusante.
Ainda assim, governos sucessivos do estado do Rio Grande do Sul têm promovido o enfraquecimento da legislação que protege a vegetação nativa. Um decreto estadual de 2015 permitiu que os proprietários de terra considerassem remanescentes de campos nativos sob uso pastoril como se fossem equivalentes a terras convertidas para culturas ou pastagens, enfraquecendo assim sua proteção sob a legislação federal. Essa disposição do decreto estadual é ilegal e foi bloqueada em 2016 por uma Ação Civil Pública.
No entanto, em uma versão modificada, foi incorporada ao Código Estadual do Meio Ambiente (Lei 11.520/2020), contra o qual outra Ação Civil Pública ainda está pendente de decisão. No nível federal, também estão em andamento tentativas de reduzir a proteção da vegetação nativa, como o Projeto de Lei 364/2019, atualmente em tramitação no Congresso Nacional, que remove a proteção de campos nativos sob uso pastoril em todo o país. Este projeto de lei foi proposto e apoiado por parlamentares do Rio Grande do Sul, aparentemente cegos para as potenciais consequências da redução da proteção.
É claro que os tomadores de decisão da região não consideram a urgência de lidar com as mudanças climáticas, sua mitigação e adaptação aos seus impactos. Se as mudanças climáticas não se tornarem uma prioridade nas políticas públicas, a população da região, que foi tão gravemente afetada agora, sofrerá eventos mais frequentes e potencialmente ainda mais catastróficos no futuro.
No primeiro semestre de 2024, chuvas intensas e inundações também afetaram o Quênia e os Emirados Árabes Unidos. O Sul e Sudeste Asiático experimentaram uma onda de calor recorde, e a América do Norte está atualmente afetada por incêndios florestais severos. Estes são apenas exemplos de eventos climáticos extremos em 2024. O resultado é uma multiplicidade de ameaças às populações humanas, economias e produção de alimentos, que podem ter efeitos de longo alcance em todos os aspectos da segurança humana. Eventos como os no Sul do Brasil claramente nos alertam: esforços para conter as mudanças climáticas precisam ser globais e rápidos, e medidas de adaptação devem ser adotadas em todo o mundo.
* Valério D. Pillar, professor do Laboratório de Ecologia Quantitativa, Departamento de Ecologia/Centro de Ecologia, Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 91051–970, Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6408-2891; Gerhard E. Overbeck, professor do Laboratório de Estudos em Vegetação Campestre, Departamento de Botânica, Instituto de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 91051–970, Brasil. https://orcid.org/0000-0002-8716-5136
** Artigo originalmente publicado na Revista Science
Foto: Vitor Shimomura / Brasil de Fatol
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