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Opinião

A sombra verde-oliva

A sombra verde-oliva

Artigo por RED
04/12/2022 14:04 • Atualizado em 05/12/2022 22:25
A sombra verde-oliva

De NUBIA SILVEIRA*

O perdedor da eleição presidencial, seus ministros militares e o bocado mais radical de seu eleitorado agitam o noticiário com o persistente negacionismo. Passado um mês do pleito, que deu a vitória a Luiz Inácio Lula da Silva, o derrotado e seus fieis seguidores fazem o que podem para manter a nação – ou parte dela – envolvida em um clima de insegurança e instabilidade. Vamos aos fatos, ocorridos em novembro, amplamente divulgados pela mídia tradicional, virtual e redes sociais:

– Bolsonaristas protestam contra a eleição de Lula. Bloqueiam o trânsito nas BRs e se postam frente aos quartéis, pedindo por intervenção militar, depois substituída por intervenção federal. Pedem a volta da ditadura e o direito de livre expressão. Ou seja, a liberdade de clamar por ações inconstitucionais e antidemocráticas. Não se lembram, ou não querem se lembrar, que os primeiros alvos de um regime autoritário são justamente as aglomerações, os protestos e os discursos oposicionistas.

– Os protestadores não sabem exatamente o que querem. Repetem como um mantra lutar por um Brasil melhor, que não obtiveram durante o governo de seu candidato. Gritam também contra o comunismo, o eterno bicho papão da classe média e da elite brasileiras, sem levar em conta o fim da guerra fria em 1991, dois anos após a queda do muro de Berlim, e o esfacelamento da URSS.

–  Apenas na segunda-feira, 1º. de novembro, o atual presidente apareceu em público, leu um discurso de dois minutos, sem reconhecer o revés eleitoral. Reforçou, assim, a continuidade dos protestos. No mesmo dia visitou os ministros do STF.

– No dia 9 de novembro, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, encaminhou ao TSE – Tribunal Superior Eleitoral o tão esperado relatório da equipe técnica das Forças Armadas sobre a urna eletrônica. O texto é ambíguo. Ao mesmo tempo em que não aponta fraudes no processo eleitoral, diz não ser possível afirmar que “o sistema eletrônico de votação está isento da influência de um eventual código malicioso que possa alterar o seu funcionamento”. O documento desagradou os correligionários do perdedor, provocando uma segunda manifestação do ministro, no dia seguinte: o documento “embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022”. O general Nogueira seguiu ao pé da letra a expressão popular “dar uma no cravo e outra na ferradura”, tentando agradar os dois lados da contenda.

– Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica divulgam nota, no dia 11 de novembro, logo após o ministro Alexandre de Moraes, do STF – Supremo Tribunal Federal, ter determinado a “imediata liberação” das vias obstruídas. Em referência aos protestos antidemocráticos, os militares afirmam que “a Constituição estabelece os deveres e os direitos a serem observados por todos os brasileiros e que devem ser assegurados pelas instituições, especialmente no que tange à livre manifestação do pensamento; à liberdade de reunião, pacificamente; e à liberdade de locomoção no território nacional”. Ressaltam o conteúdo da Lei 14.197, de 1º. de dezembro de 2021: “Não constitui crime [?] a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política, com propósitos sociais”.  Ressaltam que “as Forças Armadas permanecem vigilantes, atentas e focadas em seu papel constitucional na garantia de nossa Soberania, da Ordem e do Progresso, sempre em defesa do nosso Povo”.  Num momento de crise, como vivemos, a pergunta que surge é: de que povo os ministros estão falando? Daquele que não respeita o resultado da eleição de 30 de outubro?

– Quatro dias depois da nota dos comandantes militares, em 15 de novembro, data da proclamação da República, o ex-comandante do Exército, ex-assessor do GSI – Gabinete de Segurança Institucional e mentor de Jair Bolsonaro, general da reserva Eduardo Villas Bôas, usou suas redes sociais para defender as manifestações em defesa de seu pupilo. “Com incrível persistência, mas com ânimo absolutamente pacífico, pessoas de todas as idades, identificadas com o verde e o amarelo que orgulhosamente ostentam, protestam contra os atentados à democracia, à independência dos Poderes, ameaças à liberdade e as dúvidas sobre o processo eleitoral”, afirma a mensagem. Villas Bôas, fundador do Instituto que leva o seu nome, participou da elaboração do Projeto de Nação, que prevê/previa a manutenção de um Partido Militar no poder até 2035. Villas Bôas mostrou sua tendência intervencionista, no comando do Exército. Pressionou o STF, em 2018, por meio de uma publicação, em tom ameaçador, em seu twitter, às vésperas da votação do pedido de habeas corpus, que, se aceito, libertaria Lula, preso na sede da Polícia Federal, em Curitiba. “Nesta situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais”, diz na primeira parte do tuíte. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. O general deixa implícito que o terceiro governo Lula é uma ameaça à democracia e à liberdade, reafirmando sua propensão ao golpe militar e inconstitucional. Outra prova de sua ação golpista está na participação de Maria Aparecida Villas Bôas, esposa do general, em manifestações verde-amarelo antidemocráticas em frente aos quartéis.

– Dezenove dias após o segundo turno, o candidato a vice na chapa de Bolsonaro, conversa no famoso cercadinho, em frente ao Palácio da Alvorada, com os apoiadores do presidente. O general Walter Braga Netto acalma os ânimos dos chorosos: “Vocês não percam a fé, tá bom? É só o que eu posso falar para vocês agora.” Uma frase que deixa no ar, a possibilidade de o presidente se manter no poder, apesar da vitória de Lula.

– Dia 21, vaza o áudio do ministro do TCU – Tribunal de Contas da União Augusto Nardes, enviado a amigos, ligados ao agronegócio, em que afirma estar acontecendo “um movimento muito forte nas casernas” e que seria “questão de horas, dias, no máximo uma semana duas, talvez menos do que isso” para um “desenlace bastante forte na nação, [de consequências] imprevisíveis, imprevisíveis”. O ministro tentou se explicar por meio de uma nota em que “repudia peremptoriamente manifestações de natureza antidemocrática e golpistas, e reitera sua defesa da legalidade e das instituições republicanas”. O ministro acabou pedindo afastamento do TCU, por motivos médicos, tentando acalmar as repercussões de sua fala nos Tribunais e no Congresso.

– Primeiro presidente a não obter a reeleição, desde a aprovação da Emenda Constitucional número 16, de 4 de junho de 1997,  Jair Bolsonaro, enfurnado no Palácio da Alvorada, pressionou o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, a enviar um relatório ao TSE, questionando as urnas eletrônicas. A auditoria, feita no segundo turno das eleições, pelo Instituto Voto Legal, conclui que 279 mil urnas apresentaram problemas. Com base neste parecer, o partido solicitou, no dia 22, que os votos registrados nestes equipamentos fossem invalidados, o que daria a vitória a Bolsonaro. O presidente do Tribunal, ministro Alexandre de Moraes, foi rápido na resposta: o partido deveria solicitar, igualmente, a anulação dos votos registrados no primeiro turno, ou o pedido será indeferido, como foi. O partido recebeu multa superior a R$ 22 milhões por má-fé com a ação.

– Os comandantes das Forças Armadas informaram ao senador Jacques Wagner (PT-BA) que pretendem passar seus cargos aos indicados por Lula, ainda em dezembro. A Aeronáutica, inclusive, já marcou a cerimônia para o dia 23 de dezembro. Eles não querem prestar continência  a Lula, “submeter-se” ao novo presidente. Na equipe de transição o propósito dos ministros militares soou estranho, uma vez que a troca seria feita antes da posse do ministro da Defesa, que deverá ser um civil, como aconteceu nos governos anteriores do PT.

– A imprensa brasileira replicou, no dia 25, a notícia publicada pelo jornal norte-americano The Washington Post sobre a trama golpista da família Bolsonaro. O deputado Eduardo Bolsonaro viajou aos Estados Unidos, logo após o segundo turno, em busca de orientação do ex-presidente Donald Trump, de seu ex-estrategista Steve Bannon e de seu ex-assessor Jason Miller. Bannon e Jason confirmaram os encontros. Bannon afirma que a conversa foi o “poder dos protestos pró-bolsonaro” e contestações aos resultados da eleição. Na semana anterior, o colunista Rodrigo Rangel, do site Metrópoles, denunciara que a casa no Lago Sul, em Brasília, que serviu de comitê para a campanha do candidato batido por Lula, transformara-se no “QG do golpe”. Na casa,  apoiadores do atual presidente, liderados pelo candidato a vice, general Walter Braga Netto, discutem estratégias para contestar o resultado das eleições.

– Bolsonaro reapareceu em público, depois de 25 dias, na Aman – Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ), no sábado, 26. Participou, calado, da cerimônia de formatura da Academia. Na chegada, acenou para apoiadores que portavam uma faixa com os dizeres “Bolsonaro, acione as Forças Armadas contra a fraude das urnas” e gritavam “eu autorizo”, aludindo a um golpe de Estado. O aceno e o não reconhecimento da derrota incitam os amotinados a seguir protestando.

– No domingo, 27, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, eleito pelo Republicanos senador do RS, usou o twitter para ameaçar os supostos comunistas internacionais, prontos a intervir na  política brasileira: “Na data de hoje, em 1935, traidores da Pátria intentaram contra o Estado e o povo brasileiro. A intentona de 27 de novembro foi a primeira punhalada do Movimento Comunista Internacional contra o Brasil. Não seria a última. Eles que venham, não passarão.” Ao finalizar com a frase usada, durante a guerra civil espanhola, por La Pasionaria, a republicana Dolores Ibarruri, contra os fascistas, o general desconhece a punhalada dos neofascistas e neonazistas brasileiros contra a Constituição e a democracia, ao exigirem uma nova ditadura.

Estes fatos, ocorridos em menos de 30 dias, envolvendo Jair Bolsonaro, militares próximos a ele e civis que pregam a imediata ruptura do Estado Democrático de Direito, me fazem refletir sobre as intervenções das Forças Armadas na política republicana brasileira e sobre suas relações com os cidadãos desarmados.

O poder da farda e das armas

A primeira intervenção militar na política brasileira ocorreu no final do século XIX, com a deposição do D. Pedro II e a proclamação da República. O historiador Rodrigo Perez de Oliveira, autor de As Armas e as Letras: A Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército Brasileira (1881-1901) afirma que o golpe na monarquia foi “o desfecho de uma década de conflitos”. Eles começaram com o retorno ao país dos brasileiros, que lutaram ao lado de argentinos e uruguaios contra as forças de Solano Lopes, na Guerra do Paraguai (1864-1870), a de maior duração e proporções entre os países da América do Sul.

Octavio Amorim Neto, cientista político, afirma em Regimes e Intervenção Política dos Militares no Brasil: “O governo imperial foi profundamente civil e os políticos se orgulhavam em apontar as vantagens do sistema brasileiro sobre os governos militares das repúblicas vizinhas”. A Constituição de 1824 reforçava tal percepção ao determinar: “A força militar é essencialmente obediente, jamais se poderá reunir sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima. Ao Poder Executivo compete privativamente empregar a força armada de Mar e Terra como bem lhe parece conveniente à segurança e defesa do Império.”

Após a Guerra do Paraguai – diz Amorim – começou a formar-se uma real contraelite militar, de características distintas da elite civil, tanto em termos sociais como ideológicos. Parte do oficialato do Exército se via como o messias. Os salvadores da Pátria. Sentiam-se moralmente superiores aos políticos civis. Os conflitos entre civis e militares duraram 10 anos e ficaram registrados como “questão militar”. Com a politização do Exército, o controle civil sobre os militares acabou, tendo culminado na queda da Monarquia.

Laurentino Gomes, em seu 1889, informa que “até as vésperas de 15 de novembro de 1889, Manoel Deodoro da Fonseca, o fundador da República, não era republicano”. Era amigo de Dom Pedro II e hesitava em dar o golpe. “O Marechal ainda relutava em assumir o papel que lhe caberia na história, contra a opinião de outras lideranças militares e civis que o pressionavam para proclamar oficialmente a República.” Afinal o marechal decidiu-se pela intervenção, apoiado por jovens militares, seduzidos pela filosofia positivista, maçônicos, abolicionistas e republicanos civis, como Quintino Bocaiúva, Rui Barbosa e Campos Salles.

A aliança entre fardados e não fardados neste primeiro golpe caracteriza os demais registrados pela história. Os civis recorrem  aos militares, donos das armas. Depois desta primeira intervenção seguem-se dois governos militares e instáveis – do marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) e do marechal Floriano Peixoto (1891-1894).  Primeiro civil a assumir a presidência, o advogado Prudente José de Moraes Barros, levou ao poder a oligarquia cafeicultora. Em seu governo ocorre a Guerra de Canudos (1896-1897) em que o Exército exibe um rendimento frustrante, provocando  – como afirma Octavio Amorim Neto – “uma relativa e provisória retirada dos militares do centro da vida política, sobretudo a partir da presidência de Campos Sales (1898-1902)”. A lua de mel dos civis com o poder, sem levantes militares, dura pouco.

Rodrigo Perez de Oliveira publicou, na revista Forum, de 23 de fevereiro de 2018, o artigo intitulado Histórico das verdadeiras intervenções militares no Brasil. Nele, o autor nos convida a pularmos do início do século XX para o início do seu terceiro decênio, quando os militares voltam ao palco, desestabilizando o sistema político. Surge o movimento chamado Tenentismo. “Os tenentes afirmavam que o sistema político da época (a Primeira República) era corrupto e se diziam os moralizadores da nação”, relembra Oliveira. “Acabou que em 1929 aconteceu um racha no pacto oligárquico que então governava o Brasil e os tenentes emprestaram suas armas ao movimento político que ficou conhecido como Aliança Liberal”, que se opunha ao Partido Republicano Paulista, a grande força política da Primeira República. Tínhamos até, então, no Brasil, a política café com leite, dividida entre os paulistas cafeicultores e os mineiros, produtores de leite.

Em 1930, a Aliança Liberal lançou  candidatos à presidência o gaúcho Getúlio Vargas e o paraibano João Pessoa. A chapa reuniu gaúchos, paraibanos e mineiros, descontentes com o candidato escolhido pelo então presidente Washington Luís, paulista. Em vez de apoiar um candidato mineiro, para a preservação da política café com leite, o presidente indicou o paulista Júlio Prestes, vencedor das eleições. Os perdedores não aceitaram a derrota e com o apoio de parte dos tenentes tomaram o poder.

A Revolução de 1930 depôs Washington Luís e o substitui, no Palácio do Catete, por Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, reconhecido, já na primeira semana, pelas principais potências internacionais, entre elas os Estados Unidos. O ex-presidente e seu candidato vão para o exílio. Getúlio concede anistia a civis e militares, que participaram dos movimentos revolucionários acontecidos a partir de 1922: Revolta dos 18 do Forte (1922), revolta militar em São Paulo (1924), Coluna Prestes (1927) e a Revolução de 30.

Desde o início Getúlio mostra sua disposição de governar autoritariamente. Em 11 de novembro de 1930,  assina um Decreto, que lhe dá plenos poderes. Por ele, dissolve o Congresso Nacional, assembleias estaduais e câmaras municipais. Nomeia interventores em todos os estados. E cria um Tribunal Especial com a missão de apurar irregularidades e atos de corrupção do governo Washington Luís, como costumam fazer todos os usurpadores do poder. Tal situação persistiria até a formação de uma assembleia constituinte, para elaborar o texto da Carta que substituiria a Constituição de 1891.

Em 24 de fevereiro de 1932, Vargas promulga o novo Código Eleitoral, com a instituição do voto secreto, da Justiça Eleitoral, do voto feminino e da representação classista nos órgãos legislativos, reivindicada pelos tenentes. Neste mesmo ano, enfrenta uma crise militar, originada pela resolução do ministro da Guerra, Leite de Castro, que considera os revolucionários de 1922 mais antigos no serviço do que os seus companheiros. Ainda em 1932 eclode, em 9 de julho,  a Revolução Constitucionalista em São Paulo. O general Góis Monteiro assume o comando das operações contra os paulistas. Em 2 de outubro é assinado o armistício, confirmando a derrota paulista.

Em 3 de maio de 1933, são eleitos os deputados constituintes, que elaboram a Constituição de 1934, em substituição a de 1891. Os deputados reconfirmam Vargas na presidência da República até 1937. Em janeiro de 1938 seriam realizadas eleições presidenciais. Getúlio está impedido de se reeleger. A campanha eleitoral toma as ruas em 1936. Vargas, em discurso radiofônico, em 1º. de janeiro de 1937, garante o pleito de 1938, mesmo sem estar disposto a entregar o poder.

O perigo do comunismo foi forjado pelo presidente e seus assessores, para impedir as eleições. Este sistema político, econômico e social foi e é usado por representantes da elite e da classe média brasileiras para assustar os eleitores com a pregação de que os “agentes de Moscou” tomariam (tomarão) o poder, confiscariam (confiscarão) suas propriedades, fechariam (fecharão) igrejas, fariam (farão) lavagem cerebral nos estudantes e todas as outras mentiras que assustavam (assustam) o eleitorado economicamente privilegiado e com medo de perder qualquer privilégio por menor que seja.

Com o apoio dos militares, em especial do general Góis Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército, o presidente decide recorrer ao “perigo vermelho” para se eternizar no poder. Em 30 de setembro de 1937, Góis usa o rádio para denunciar a existência de um suposto Plano Cohen, concebido pelo Partido Comunista Brasileiro e organizações comunistas internacionais com o propósito de derrubar Getúlio, eliminar os chefes militares, criar agitação entre operários e estudantes, libertar presos políticos, incendiar casas e prédios, promover saques e depredações. As fake news, antes chamadas de pura mentira, seguem perturbando e assustando os conservadores. O governo exibe inclusive um documento forjado como  prova da ameaça comunista.

Getúlio manda as tropas cercarem o Congresso, autoriza uma série de prisões de “inimigos” e dá início a um novo período ditatorial, com o apoio dos militares, denominado Estado Novo, que se estende até 1945. Depois de 15 anos no poder, o gaúcho é  deposto pelos militares brasileiros que lutaram na Europa contra os nazistas e os fascistas. Voltaram imbuídos de princípios democráticos e não aceitavam ter no seu próprio país um governo ditatorial como o que eles haviam ajudado a derrotar. José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, assume a presidência até a posse do presidente eleito general Eurico Gaspar Dutra. Os militares voltam ao poder. Por cinco anos (1946-1951).

No final do governo Dutra, em 1949, em plena guerra fria, iniciada logo após o final da Segunda Guerra, é criada, no Rio de Janeiro, a Escola Superior de Guerra, dedicada “aos altos estudos políticos e estratégicos” e funcionando, segundo o historiador Rodrigo Perez Oliveira, “como centro de formulação de uma doutrina político-militar”. Com o mundo dividido entre duas lideranças ideológicas – os Estados Unidos e a União Soviética –, naturalmente a doutrina da ESG caracteriza-se pelo anticomunismo. Doutrina da qual se aproximou a UDN, e do partido, boa parte do oficialato. Do outro lado, encontra-se o trabalhismo do PTB, que mais tarde passa a dialogar com o PCB, diz Oliveira.

Nas eleições de 1950, Vargas retorna ao Catete pelo voto direto dos eleitores, sob o combate cerrado da oposição, representada pela UDN, do jornalista, político e excelente orador Carlos Lacerda. O “bom velhinho”, o “pai dos pobres” sofre ataques de empresários, militares e políticos de oposição. Em agosto de 1954, os ministros militares avisam Vargas que ele seria apeado do governo pelas Forças Armadas, como acontecera em 1945. Ele se decide pelo suicídio. Café Filho, vice de Getúlio, assume a presidência em meio a grande convulsão social. Ele cede espaço aos udenistas, para poder concluir o seu mandato, o que não acontece.

Por problemas cardíacos, em 1955, Café Filho se afasta da presidência, assumida pelo presidente da Câmara Federal, deputado Carlos Luz. Enquanto ocorrem estas trocas, o mineiro Juscelino Kubitschek segue com sua campanha, iniciada em 1954, para a presidência da Repúbica, como candidato da coligação PSD/PTB, contrariando os interesses da UDN, que defende um golpe contra ele.

Num de seus primeiros atos, Carlos Luz indica o general Álvaro Fiúza de Castro para o ministério da Guerra, no lugar do general Henrique Teixeira Lott. Fiúza é contra a posse de JK, se ele for o vencedor das eleições de 1955. Sua nomeação, portanto, confirma  o futuro golpe. Mas, antes de entregar o cargo, Lott, convencido por outros militares legalistas, depõe Carlos Luz. Café Filho, então, se apresenta para reassumir a presidência. Lott desconfia de suas pretensões e prefere entregar a presidência ao presidente do Senado, Nereu Ramos, que passa o cargo para Juscelino em 31 de janeiro de 1956. Lott passa para a História como um militar pronto a defender a Constituição, a legalidade.

O período JK é de investimento na indústria nacional, na construção de Brasília em pleno cerrado central, de grande inflação e de muita festa e alegria. Durante o seu mandato nascem a bossa nova e o cinema novo.  Foi  um período democrático. Sem qualquer ameaça, além das da UDN, o presidente passa o cargo a Jânio Quadros, na nova capital brasileira ainda em obras.

O candidato do PTN senta-se na cadeira de presidente, no Palácio do Planalto, com desejos autoritários, que já demonstrara como prefeito de São Paulo. Em busca de mais poderes, tenta o autogolpe. Renuncia à presidência. Deixa um bilhete e uma carta encaminhados ao Congresso. Jânio confessa, anos mais tarde, ao neto, que esperava voltar a Brasília com poderes ditatoriais. Ele calcula bem a data para afastar-se do cargo: o vice João Goulart, do PTB, está em viagem oficial à China e é visto com péssimos olhos pelos militares, que o consideram próximo demais dos sindicatos e dos comunistas. Portanto, pensa o renunciante, com o veto das Armas a Jango, só resta uma saída: os militares bancarem-no como presidente plenipotenciário. O plano dá certo em parte: as Forças Armadas realmente se levantam contra Jango. Mas o Congresso aceita a sua renúncia, na data em que foi pedida, 25 de agosto de 1961, Dia do Soldado. O Congresso declara o cargo vago e indica para ocupá-lo o presidente da Câmara Federal Ranieiri Mazzilli.

Constitucionalmente, o novo presidente é o gaúcho Jango, sem condições de voltar ao Brasil pela oposição dos verde-oliva. Brizola, cunhado de Jango, e governador do Rio Grande do Sul, ao perceber o golpe, levanta sua voz de grande orador e aglutinador de pessoas para denunciar o golpe e exigir que a legalidade seja respeitada. Carlos Lacerda, da UDN, governador do então Estado da Guanabara abusa da censura e do poder de polícia para coibir manifestações a favor de Jango.

O Movimento da Legalidade se fortalece com a criação de uma rede radiofônica – a Cadeia da Legalidade –, que transmite pelas ondas da Rádio Guaíba, requisitada pelo governador e levada para os porões do Palácio Piratini, notícias, o Hino da Legalidade e os discursos de Brizola. Aos poucos, o governador vai conquistando o apoio dos comandantes das divisões do Exército no RS. Em Brasília, seguem as negociações políticas. Jango empreende uma longa viagem de volta, esperando que o impasse se resolva a seu favor.

Depois de conquistar os comandantes das divisões do Exército, Brizola recebe o apoio do Comandante do III Exército – atual Comando Militar do Sul –, general Machado Lopes, que foi ao Palácio Piratini dizer-lhe ser a favor da legalidade. Para o jornalista Carlos Bastos, a concordância de Machado Lopes é decisiva para a vitória da resistência de gaúchos e goianos.

Jango assume a presidência no dia 7 de setembro de 1961, depois de ter conversado com o deputado Tancredo Neves, em Montevidéu. A proposta dos militares e políticos de oposição é de que Goulart assuma com seus poderes minguados pelo parlamentarismo. Aceita. Tancredo se torna primeiro-ministro.

Os opositores civis e militares de Jango não lhe dão trégua. Continuam preparando golpe, abortado em 1961. Com sua renúncia, Jânio Quadros não só surpreende brasileiros e brasileiras como detona uma crise política que abre a porta para a ditadura militar.

A larga sombra verde-oliva

Adhemar de Barros, governador de São Paulo, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, da Guanabara, conchavam com os militares para a derrubada do adversário João Goulart. Ao lado do presidente estão Miguel Arraes, de Pernambuco, Seixas Dória, de Sergipe, e Petrônio Portela, do Piauí, que logo se bandeia para o lado dos golpistas, tendo crescido muito na política, durante o regime militar.

Como agora, as mentiras, espalhadas pelos adversários, conquistam – como atualmente – conservadores, anticomunistas e de extrema-direita. Livros, documentos, panfletos, revistas, filmes e documentários, contra a política do governo João Goulart são produzidos e divulgados pelo IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, criado em 1961, por empresários cariocas e paulistas e uma parcela de militares ligados à ESG – Escola Superior de Guerra.

Há também o IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática, organização anticomunista, que entra em cena, igualmente, pelas mãos de empresários brasileiros, em 1959. O Instituto é ligado à CIA – Agência Central de Inteligência Norte-americana. Fechado por ordem judicial, em 1963, o IBAD é absorvido pelo SNI – Serviço Nacional de Informação. O Instituto dissemina propaganda anticomunista e anti Goulart pelos meios de comunicação, com dinheiro vindo dos Estados Unidos. Exibem filmes com estes conteúdos para estudantes e militares. A historiadora Heloísa Starling diz que, apenas em 1964, o IBAD gastou dois milhões de dólares em propaganda.

Outro grupo radical, que agita a população contra Jango, é a TFP – Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, fundada em 1960, por Plínio Corrêa Oliveira, um católico fundamentalista. Seus representantes andam pelas ruas pregando contra Jango. A TFP é uma das responsáveis pelas Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Temiam a chegada do comunismo, a perda de liberdade (perderam com a ditadura pela qual oravam), de suas terras e casas.

No documento Golpe Militar  de 64, a historiadora e cientista política Heloisa Starling conta que o IPES se dedica a preparar e executar “um bem orquestrado esforço de desestabilização do governo, que incluiu custear uma vigorosa campanha de propaganda anticomunista, bancar diversos tipos de manifestação pública antigovernista e escorar inclusive financeiramente grupos e associações de oposição ou de extrema direita”. Lembra algo da atualidade? Por exemplo, grupos vestindo verde-amarelo, concentrados em frente aos quartéis gritando, chorando, orando e sonhando com um golpe preventivo contra o governo Lula. Todos, evidentemente, mantidos por empresários bolsonaristas.

Starling lista ainda os grupos ligados ao IPES, como “mulheres politicamente organizadas”, movimentos estudantis, grupos de trabalhadores urbanos, operários, camponeses, líderes rurais, parlamentares patrocinados pela Ação Democrática Popular, “uma frente conservadora voltada para a desestabilização do governo João Goulart”.

Militares e civis de oposição decidem ver-se logo livres do presidente, depois do comício de 13 de março de 1964, em que Jango discursa em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro,  para cerca de 200 mil pessoas. Jango defende seu plano de reformas de base – agrária, tributária, eleitoral, educacional, política e urbana. Ele se propõe a diminuir a concentração de renda. Seus adversários estremecem com o que ouvem e reagem rapidamente. É organizada uma grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade, no dia 19 de março, em São Paulo, da qual participam conservadores, antipopulistas, anticomunistas, católicos radicais e todo tipo de gente que teme a suposta instalação no país de uma república sindicalista ou comunista. O número de participantes da marcha chegou a 500 mil pessoas, de acordo com a manchete do Jornal do Brasil. Os marchantes rezam, levantam faixas com os dizeres: “Comunismo não. Democracia sim”, “O Brasil não será uma nova Cuba”, “Queremos Governo Cristão” e “Verde Amarelo Sem Foice Nem Martelo” e outras. Rezam e cantam o Hino Nacional, carregam bandeiras. Alguma semelhança com os conservadores antidemocráticos de 2022?

Afoito, impaciente, decidido a não esperar mais pela ordem dos demais generais das Forças Armadas para dar início ao golpe contra o presidente, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª. Região Militar, sediada em Belo Horizonte, coloca as tropas na rua, com o apoio do governador Magalhães Pinto, em direção ao Rio de Janeiro. A vitória dos revoltosos só ocorre no dia seguinte, 1º. de abril, o Dia dos Bobos. “O Exército dormiu janguista no dia 31 … e acordou revolucionário no dia  1º.”, afirma o general Cordeiro de Farias, segundo Elio Gaspari, jornalista e autor da coleção de cinco volumes sobre a ditadura –  A Ditadura Envergonhada, Escancarada, Derrotada, Encurralada e Acabada.

O cientista político Octavio Amorim Neto diz que “não seria exagero afirmar que entre, 1946 e 1964, o Brasil experimentou, na verdade, um presidencialismo de coalizão civil-militar”. A partir de 1964, passou a valer mais a vontade dos militares do que a dos civis. No poder, fecham o Congresso, em represália ao discurso de um jovem deputado, cassam políticos, como o aliado Carlos Lacerda, o Corvo, e o ex-presidente Juscelino Kubitschek, professores, militares, funcionários públicos. Todos perdem seus direitos políticos. Abortam as eleições de 1965, que o general Castelo Branco, ao assumir a presidência, prometera manter e passar a faixa presidencial para o eleito. Exilam, prendem, torturam e matam oposicionistas.

Entre os piores torturadores de brasileiros e brasileiras está o herói do presidente Jair Bolsonaro, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. “É um herói nacional que evitou que o Brasil caísse naquilo que a esquerda hoje em dia quer”, diz o presidente ao sair do Palácio da Alvorada, em 8 de agosto de 2019, para almoçar com a viúva do coronel, Maria Joseíta Silva Brilhante Ustra.

O herói-torturador comandou, em São Paulo, o DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, de 1970 a 1974. Em seu depoimento à Comissão da Verdade, em 2013, nega as torturas e diz que não houve mortes no Destacamento. No entanto, baseada nos testemunhos de torturados – inclusive crianças – a Justiça o reconheceu como torturador.

A ditadura dura 21 anos (164-1985), tendo a redemocratização chegado depois de grandes movimentos populares: pela Anistia e pelas  Diretas Já. Tancredo Neves e José Sarney são eleitos, pelo Colégio Eleitoral, em 15 de janeiro de 1985, presidente e vice-presidente. Tancredo não chega a presidir o Brasil. Internado na noite anterior à solenidade de posse, falece em 21 de abril de 1985. José Sarney, o vice, preside o país até 15 de março de 1990.

O Brasil viveu de 1985 a 2018, o período em que, diz Amorim Neto, “Forças Armadas aceitaram um novo padrão de relações civis-militares, pelo qual se absteriam de comentar ou interferir em qualquer crise política. Todavia, a contrapartida do ‘mutismo’ ou passividade política por parte da caserna foi a ferrenha defesa dos seus direitos corporativos, garantidos durante as negociações que levaram ao fim do regime militar”.

A partir de 2018, nos governos Temer e Jair Bolsonaro, os militares – a sombra verde-oliva que paira sobre a República brasileira – voltam à cena política. O atual presidente nomeia 7 mil militares da ativa e da reserva para cargos civis, entrega o ministério da Defesa a um general, passa a tratar as Forças Armadas como “suas” e o esteio político fundamental de seu governo, desfavorecendo o regime democrático.


*Jornalista, trabalhou em jornal, TV e assessoria de imprensa, em Porto Alegre, Brasília e Florianópolis. Foi repórter, editora e secretária de redação. É coordenadora do programa Espaço Plural da RED – Rede Estação Democracia.

Imagem em Pixabay.

Texto originalmente publicado na revista Parêntese, do Grupo Matinal.

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