Opinião
A defesa da laicidade a partir da fé
A defesa da laicidade a partir da fé
De HUMBERTO MAIZTEGUI GONÇALVES*
O Estado Brasileiro nunca foi laico, mesmo após este principio ter sido estabelecido e reafirmado em diversas constituições, a partir da liberdade de cultos em 189. Por que? E por que a luta pela laicidade do Estado é uma questão de fé?
A religião colonial – em nosso caso, a Igreja Católica Apostólica Romana – foi uma das mais importantes ferramentas ideológicas de dominação, justificando a escravização e subordinação das centenas de povos indígenas, seus territórios, suas religiões e culturas; justificando o sequestro e escravização das pessoas negras oriundas do continente africano; consagrando – lateralmente e simbolicamente – a superioridade das nações e culturas europeias sobre todas as outras e, mesmo com certa flexibilidade e muita hipocrisia, estabelecendo um padrão moral de relações de gênero, de família e de relações sociais, políticas e econômicas.
Por outro lado, as religiões ou religiosidades dos povos e pessoas dominadas – especialmente as indígenas e de matriz africana – resistiram! Diferentemente da religião dominate de cunho protestante; no Brasil, a tradição romana deixou brechas para que as formas de crença das pessoas oprimidas se mantivessem – escondidas sob o manto do sincretismo – e permanecessem como símbolo e instrumento da memória das vítimas da opressão colonial.
Quando se estabelece, a partir da burguesia emergente e de seu ideário republicano, o princípio da laicidade como garantia democrática, mesmo que apenas, e a partir da nova classe dminante, a matiz romana começa a ser questionada. Chegam as tradições protestantes, melhor equipadas, como demonstrou Max Weber, para serem instrumentos do sistema capitalista. Isso também libertou parte do catolicismo romano para assumir uma postura critica em relação ao Estado e as relações políticas, econômicas e sociais. No século XX a partir das lutas populares, se dá o surgimento das teologais da liberação, impulsionadas pela abertura dada pelo Concilio Vaticano II (1962 1965). Também, as tradições reformadas ou protestante deram sua contribuição para as teologias da liberação, especialmente a parir do surgimento do Conselho Mundial de Igrejas em 1948.
Ao mesmo tempo, o avanço do padrão científico-tecnológico de pensamento, trouxe a secularização do cotidiano e estabeleceu a sociedade de consumo como religião (vide os textos do teólogo Jung Mo Sung neste sentido). Mas, nada disso fez com que as religiosidades dos povos e pessoas oprimidas fossem reconhecidas e que a interdependência entre a classe dominante – que no Brasil se manteve basicamente a mesma – e a Igreja Católica Romana e setores pró-capitalistas do protestantismo, também fosse mantida.
A Constituição de 1988, com o reconhecimento dos direitos ancestrais dos povos indígenas, de territórios quilimbolas e das religiões de matriz africana, despertou uma importante reação “conservadora” contra o Estado Laico. A laicidade se abria perigosamente para reconhecimento da memória da opressão colonial e capitalista. Na, medida em que ganham visibilidade as culturas e religiosidades da resistencia questionam, por si mesmas, os símbolos da superioridade étnica, de gênero, cultural, social e econômica que estrutura sistema hegemônico.
Novas matrizes religiosas emergem desta reação, especialmente sob o patrocínio vindo dos Estados Unidos de Norte América, e de formas próprias, como as chamadas “igrejas de mercado”. Estas práticas e sistemas religiosos se apresentaram como novos e mais aprimorados instrumentos ideológicos para sustentar o capitalismo neoliberal. Dessa forma foram avançando dentro das estruturas de poder, com forte apoio da classe dominante, até chegar ao ponto em que nos encontramos. Um dos princípios que estes grupos promovem é a inviabilização da laicidade do Estado. A liberdade de “evangelizar” é o pretexto para impedir, mais uma vez, que as religiões da luta de resistência, sejam reconhecidas, ouvidas, respeitadas e consideradas. Também serve para esvaziar e reprimir setores críticos e libertadores dentro das tradições cristãs católicas ou protestantes.
A luta pela laicidade do Estado é uma questão de fé para quem questiona, resiste e defende a reparação e transformação das estruturas de poder a partir do grito e do conhecimento de suas vitimas. Não é apenas a defesa da real implementação do que hoje a Constituição estabelece, mas a construção de políticas públicas concretas em favor de pessoas e povos historicamente excluídos no sistema colonial e capitalista. O Estado Laico é um imperativo democrático e garantia de novas relações de poder em favor da vida de todas as pessoas e da Casa Comum. Mais um motivo para, a partir da participação popular no processo eleitoral, impulsionar candidaturas que representam pessoas indígenas e negras comprometidas com a superação do racismo social, econômico, politico e religioso e com a defesa de direitos ancestrais, tradicionais e territoriais em um Estado cada vez mais, democraticamente, laico.
*Doutor em Teologia, Bispo Diocesano da Diocese Meridional da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.
Foto em Pixabay.
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