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Opinião

A crise da Libra e o recado dos mercados

A crise da Libra e o recado dos mercados

Artigo por RED
08/10/2022 07:00 • Atualizado em 09/10/2022 20:40
A crise da Libra e o recado dos mercados

De ANDRÉ MOREIRA CUNHA e ANDRÉS FERRARI*

A Crise da Libra…

A libra esterlina está derretendo diante das incertezas provocadas pela proposta de revisão orçamentária do novo governo conservador. Trata-se do novo capítulo da mal sucedida saga iniciada por David Cameron com o plebiscito que levou ao Brexit e potencializada na gestão idiossincrática de Boris Johnson. A moeda britânica, que já foi um dos principais símbolos de império em que o “sol nunca se põe”, atingiu seu menor valor frente ao dólar estadunidense. Em termos nominais, a libra está sendo cotada quase ao par (GBP/USD 1,05 em 03 de outubro), o que representa uma queda de 22% em doze meses ou cerca de 40%, quando se compara com o imediato pré-Brexit. Em termos comparativos, o Euro manteve-se relativamente estável nos últimos seis anos, pelo menos até a eclosão da Guerra da Ucrânia. Depois desta, a queda foi de 15%.

Nos três dias que se seguiram ao anúncio do “Plano de Crescimento” do Gabinete de Liz Truss, a perda acumulada da moeda britânica chegou a 6%. A reversão parcial do quadro de deterioração da libra se deu a partir forte atuação do Banco da Inglaterra (BoE), que entrou no mercado de forma agressiva, comprando títulos públicos. O estopim da corrida contra os ativos britânicos foi o anúncio, em 23 de setembro, do plano de estímulos à economia no valor de £45 bilhões (US$ 48 bilhões), o que equivale a cerca de 2% do PIB do país. O pacote desenhado pelo novo Ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng, não sinalizou para fontes consistentes de financiamento no longo prazo. O Tesouro apostou na ideia de que a redução de impostos per se é capaz de acelerar o crescimento, o que segue os manuais empoeirados dos anos 1980, quando, com Margaret Thatcher e Ronald Regan, viveu-se o apogeu do Supply-Side Economics.

Os investidores não receberam muito bem as medidas e suas repercussões na sociedade e entre os formadores de opinião. Reverberou com força que os tecnocratas do Tesouro e o senhor Kwarteng foram bastante generosos em reduzir impostos e pouco claros quanto aos benefícios para a sociedade e os seus efeitos de longo prazo sobre as contas públicas. Dentre as medidas anunciadas, uma se relevou particularmente polêmica: eliminar a alíquota mais elevada de tributação sobre a renda, atualmente em 45%. Até mesmo os seus correligionários ficaram preocupados com as suas repercussões políticas. Michael Gove, parlamentar do Partido Conservador e ex-Ministro da Educação e da Justiça, deixou isso claro: “Vai ser muito, muito difícil argumentar que não há problema em reduzir os pagamentos de assistência social quando estamos cortando impostos para os mais ricos”.

Para complicar o quadro, a Primeira-Ministra informou revelou, em entrevista à BBC, que a decisão extinguir a alíquota mais elevada de tributação não havia sido previamente informada ao Gabinete, sendo uma medida definida exclusivamente pelo Ministro das Finanças. As pressões no sentido contrário foram tão intensas que, dez dias depois do anúncio original, o Ministro das Finanças teve de recuar e manter a alíquota de 45%.

Em seu total, 2/3 do valor dos £45 bilhões do pacote envolvem redução de impostos; e 1/3 de novos gastos – detalhes na tabela 4.2 do documento principal (Growth Plan, 2022, pps. 26 e 27). Como as contas não fecham, a dívida pública terá de aumentar no curto prazo. Para o futuro, o Tesouro se baseia em princípios gerais, quais sejam: “… um compromisso claro com a responsabilidade fiscal e com a redução da dívida como proporção do PIB … (e) tomar as decisões responsáveis ​​necessárias para alcançar isso, incluindo manter os gastos sob controle …” (Growth Plan, 2022, p. 11). O objetivo final é fazer com que a economia do país volte a crescer ao ritmo de 2,5% ao ano.

Em síntese, Liz Truss e seu governo oferecem duas certezas no curto prazo: a queda de impostos, com benefícios concentrados nos mais ricos e nas empresas; e o aumento da dívida pública. Já as possibilidades mais claras para o longo prazo são: ausência de garantias de que haverá bases sólidas para estabilizar a relação dívida pública/PIB; e direcionamento dos esforços dos futuros ajustes sobre as despesas, por meio do corte de gastos públicos, especialmente na área social.

…e a Reação dos Mercados

Os tomadores de decisão reagiram de forma racional ao Voodoo Economics: fugiram do risco e venderam títulos de dívida em libras e ações, provocando uma forte queda em ambos os mercados. O aporte oficial de liquidez do BoE adiou ajustes mais disruptivos. Porém, não é prudente supor que a mesma terá fôlego longo. A inconsistência fiscal é maior do que a capacidade de o BoE estabilizar os mercados, mantendo-os líquidos e operando com taxas de juros razoáveis. Com uma inflação perto de 10% a.a., muita acima do teto de 2,0%, e taxas de curto prazo de 2,25% a.a., ficou no retrovisor a era das políticas excepcionais de expansão quantitativa do seu balanço e juros zero.

A suposta ousadia do governo conservador, com seu corte agressivo de impostos, foi calibrada para proteger os ricos. Nem mesmo o recuo posterior na intenção de eliminar a alíquota de 45% sobre as rendas mais altas altera este quadro, posto que os demais benefícios foram mantidos intactos. Ademais, o plano deixa claro que não há a menor disposição em mandar a conta dos ajustes estruturais da economia britânica para o sempre privilegiado andar de cima da sociedade. Já as classes não proprietárias terão de conviver com uma realidade de restrições crescentes: desemprego em alta, rendas do trabalho estagnadas ou em queda, encarecimento de bens e serviços essenciais (hipotecas, energia, alimentos etc.) e deterioração na qualidade dos serviços públicos essenciais, particularmente saúde, educação e assistência social.

Diante desta realidade, o Fundo Monetário Internacional subiu o tom em suas críticas, com seus representantes afirmando, de forma contundente e pouco usual, que o plano não tinha consistência fiscal, gerando pressão excessiva sobre o Banco da Inglaterra. In verbis: “… dadas as pressões inflacionárias elevadas em muitos países, incluindo o Reino Unido, não recomendamos pacotes fiscais grandes e não focados, pois é importante que a política fiscal não funcione em oposição à política monetária.”. Ademais, para o Fundo as medidas tendem a ampliar as desigualdades econômicas e sociais.

O insuspeito analista do Financial Times, Martin Wolf, reconhecido por suas credenciais conservadoras, utilizou sua coluna para criticar duramente o pacote do novo governo: “A realidade é que a Truss não tem um plano de crescimento. Ela tem uma… poção mágica na qual borrifa a reversão dos recentes aumentos de impostos, liberdade para os bônus dos banqueiros e impostos mais baixos para os ricos, diz “abracadabra” e de repente quadruplica o crescimento da produtividade, conjurando um crescimento anual de 2,5%. Tais sonhos poderiam ser divertidos se não fossem tão perigosos para o país.”

Para Wolf há três problemas insolúveis na estratégia de Truss, que (i) se baseia em uma “mentira”, assim como as demais mágicas propostas pelos sucessivos governos conservadores; (ii) só produzirá insegurança para a maioria da população e maior desigualdade; e (iii) mina a credibilidade das instituições públicas, posto que o Tesouro optou por ser opaco em suas intenções e políticas de financiamento. Wolf considera que o núcleo duro do atual governo é formado por pessoas “loucas, ruins e perigosas. Eles devem partir.”.

Os analistas da “The Economist” concordam que é insensato supor que será possível estimular a economia com cortes de impostos e novos gastos sem funding estável. O mais razoável seria rever as bases do plano antes de o mesmo ser apreciado no Parlamento. Em seu afã de “reformar o setor público”, Truss somente conseguiu demonstrar como não gerir um país: “Em suas primeiras semanas, o novo governo destruiu sua própria reputação, desencadeou uma inflação mais alta, forçou uma ação de emergência do banco central e dificultou o crescimento. Imagine o que ele pode fazer em um mês ou dois.”

Kwasi Kwarteng foi obrigado a recuar na decisão de eliminar a alíquota de 45% sobre as rendas mais elevadas. Todavia, ao anunciar este passo atrás, reafirmou o desejo de seguir “…. cortando impostos”, a despeito das “pequenas turbulências” nos mercados. Se, de fato, o governo de Liz Truss estivesse comprometido com a retomada do crescimento sob bases orçamentárias e sociais estáveis, o mix indicado de políticas deveria ser significativamente distinto: recuperar a capacidade de o Estado investir em infraestrutura, conhecimento e pessoas, com ampliação da tributação sobre o patrimônio dos mais ricos e suas rendas financeiras. No caso do Reino Unido, há um amplo e bem informado debate de alternativas viáveis às políticas neoliberais do Partido Conservador, especialmente as reunidas em centros de pesquisa como o Progressive Economy Forum, o Center for Progressive Policies, o Institute for Innovation and Public Purpose, para citar alguns.

As recentes medidas anunciadas por Liz Truss e Kwasi Kwarteng evidenciam que os tories, em linha com suas convicções libertárias e da mesma forma que seus pares ao redor do mundo, preferem romper com a estabilidade das finanças públicas do que reintroduzir medidas mais intensas de tributação dos ricos. Além de proteger as suas próprias fileiras partidárias e seus pares na sociedade, as finanças públicas frágeis sempre abrem espaço para a introdução de medidas de “austeridade”, com corte de gastos sociais e a privatização dos serviços públicos.


*Professores do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS.

Imagem em Pixabay.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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