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Opinião

A criança devorada

A criança devorada

Artigo por RED
26/03/2023 20:02 • Atualizado em 28/03/2023 08:41
A criança devorada

De SOLON SALDANHA*

Um magnata irlandês chamado James Jameson, herdeiro de uma grande produtora de whiskey, comprou no Congo, em 1888, uma menina negra de dez anos de idade. Entediado com a vida, trocou seis dos seus muitos lenços de seda pura por ela, mas com um objetivo ainda mais torpe do que a compra em si. Após adquirir a criança, como se fosse uma simples mercadoria, ele a entregou para um grupo de canibais. Seu objetivo era desenhar a cena dela sendo devorada por eles, de tal modo que tivesse depois boa história – e ilustrada – para contar nas rodas de conversa da aristocracia à qual pertencia.

Isso é real. Está amplamente documentado. A criança foi amarrada no tronco de uma árvore e fatiada aos poucos, ainda viva. Cada pedaço que dela retiravam era lavado nas águas de um rio próximo e devorado a seguir. Apenas no final sua cabeça foi cortada. O patrocinador assistiu tudo comodamente sentado e fazendo os desenhos que se propusera.

Oito anos antes deste fato, James havia herdado uma vasta fortuna. Ele era tataraneto de John Jameson, que foi o fundador da famosa empresa Irish Whiskey. Como tantos outros ricos da mesma época – será muito diferente hoje em dia? –, ele se considerava um aventureiro, acima das necessidades dos pobres mortais, como trabalhar, por exemplo. Então, dedicava tempo para acompanhar expedições de exploradores. Foi por isso que estava em grupo que buscava prestar socorro a Emin Pasha, liderada pelo renomado Henry Morton Stanley, na África Central. Pasha era o líder de uma província otomana no Sudão, que enfrentava uma revolta. Em tese, a proposta era levar mantimentos para ele. Mas, na realidade, havia um segundo propósito, que era anexar mais terras para a colônia que os belgas tinham no Congo.

Aqui, faço um parêntesis: no período em que os belgas governaram o Congo, em especial quando do reinado de Leopoldo II, o tratamento dado às populações locais era terrível. Há registro, por exemplo, do que ficou conhecido como “O Holocausto Congolês”, quando algo entre oito e dez milhões de habitantes foram mortos e muitos outros mutilados, durante ocupação que visava a extração de látex. Voltando ao crime bárbaro cometido por James, existem relatos dele inclusive no diário de sua própria esposa e no daquele que era seu tradutor, o sudanês Assad Farran. E teria sido praticado quando ele estava circunstancialmente no comando de uma coluna da expedição, em Ribakiba. Esse era um posto comercial, que ficava em região remota do Congo e onde se sabia existir população canibal. Então entrou em contato com Tippu Tip, um comerciante de escravos, a quem revelou o desejo de assistir a um ato de canibalismo.

Este, que era uma espécie de líder miliciano dos nossos tempos, entrou em contato com chefes de aldeias e intermediou o negócio de compra da menina. Foi ele também que informou aos nativos que o irlandês branco pretendia presenteá-los com a “presa”. O próprio James deixou relato escrito no qual afirma que foram três os homens que atacaram primeiro, não tendo sobrado ao final nenhum pedaço do corpo da criança. Absurdo maior está de forma unânime nos relatos de todas as testemunhas: ela não emitiu um som, não lutou, apenas se deixou ser imolada. Jameson fez alguns esboços no local, sendo que mais tarde, de memória e em sua tenda, terminou de elaborar os desenhos que tanto desejava.

A história saiu inclusive na imprensa, não apenas a europeia. O jornal New York Times também a publicou. E, mesmo com todos os registros e as provas testemunhais, James Jameson jamais enfrentou problemas com a justiça. As poucas acusações que foram formuladas contra ele, todas por “má conduta”, foram abafadas pela sua família, com a ajuda do governo da Bélgica. O que aliás foi feito com muitas outras atrocidades cometidas pelos brancos invasores.

James morreu algum tempo depois, vitimado por uma febre misteriosa. E as expedições civis, que não eram de interesse científico, foram aos poucos sendo suspensas. Mesmo assim, aquelas ditas oficiais, promovidas pelos governos europeus, tiveram continuidade. Assim como muitas outras, de ordem estritamente militar. Todas elas com o objetivo de “desbravar e pacificar” o continente africano.

O bônus deixado pelo autor é o clipe da música Estado Violência, com os Titãs.


*Jornalista e blogueiro. Apresentador do programa Espaço Plural – Debates e Entrevistas, da RED.

Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.

Imagem de James Jameson, um típico “homem de bem”: branco, rico, canalha e intocável.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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