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Os nudes que salvaram o Brasil

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Os nudes que salvaram o Brasil
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De SOLON SALDANHA* Estamos no ano de 2016. Na tarde de 15 de abril chega um e-mail privado para o então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Alexandre de Moraes. No texto, a informação de que haviam hackeado um outro endereço eletrônico, esse pertencente à primeira-dama do Brasil, Marcela Temer. Rapidamente o zeloso secretário mobiliza uma equipe de policiais especializados, que se debruçam sobre o caso. Não demora muito e descobrem que não apenas o e-mail dela havia sido invadido, como também sua conta na Apple e os conteúdos do celular pessoal. Desse último, os invasores copiaram um considerável número de fotos íntimas – logo dela, que sempre fora apresentada como uma mulher “recatada e do lar” –, o que permitiu ser iniciada uma chantagem. Queriam R$ 300 mil para que nenhuma fosse divulgada nas redes sociais. O hacker, no entanto, subestimou a capacidade técnica dos policiais que se envolveram na sua identificação. O mega aparato levou poucos dias para descobrir nome e endereço do responsável, que foi preso. Michel Temer ficou encantado com a presteza e discrição de Alexandre de Moraes, a quem antes conhecia apenas de nome. O inquérito, devido à complexidade do caso, somou mais de 1.100 páginas. Mas, em nenhuma delas foi sequer citado o que o invasor havia encontrado no celular de Marcela. Esse reconhecimento rendeu, pouco tempo depois, um convite para que Alexandre de Moraes assumisse o Ministério da Justiça, em Brasília. Na Capital Federal, houve uma aproximação maior entre o presidente e o ministro. Tanto que, quando o catarinense Teori Albino Zavascki faleceu, vitimado por um acidente aéreo até hoje suspeito, abrindo uma vaga no STF, o nome de Alexandre de Moraes foi indicado para a sucessão. Essa morte foi em 19 de janeiro de 2017, tendo o bimotor turboélice decolado do Campo de Marte, na cidade de São Paulo, com destino à Paraty. Caiu no mar, 30 minutos depois da decolagem. Reconhecido por ser um dos mais técnicos entre os integrantes da Corte, além de ser extremamente avesso aos holofotes, Zavascki estava examinando os primeiros recursos contra as decisões depois comprovadamente ilegais do então juiz federal Sérgio Moro, quando morreu. Recaiu sobre Alexandre de Moraes uma série de dúvidas sobre sua real capacidade, quando ele assumiu. Aos poucos, no entanto, conforme foram chegando em suas mãos temas de enorme sensibilidade para a defesa da democracia e o futuro do nosso país, ele se revelou como o mais ousado e corajoso membro do Supremo. A tal ponto que passou a acumular sobre si toda a atenção e ódio da extrema-direita bolsonarista. Nos planos que pretendiam, se tivessem sido concluídos, dar um golpe militar e tomar o poder, em janeiro de 2023, estava prevista no mínimo a sua prisão, com muitos dos envolvidos defendendo que seria melhor sua execução sumária. Foram decisões de Alexandre de Moraes, por exemplo, citando apenas o período de combate à pandemia, suspender as restrições impostas à Lei de Acesso à Informação; negar o pedido de suspensão da Lei de Abuso de Autoridade; dar aos Estados e municípios o direito de tomar atitudes referentes à saúde pública, mesmo que à revelia do Governo Federal; e mais tarde ainda considerar como legítimo o desejo da CPI da Covid de pleitear apuração de supostas condutas criminosas do ex-presidente Bolsonaro, entre elas a de associar a vacinação contra essa doença com a infecção por HIV. Esse recorte serve apenas para exemplificar que ele se colocou sem temor algum, contra o que desejava o Executivo. Foi ele também que tornou públicos documentos sobre operações que envolviam empresários, que desde 2019 eram mantidos sob inexplicável sigilo – talvez apenas em virtude do nível socioeconômico dos que estavam envolvidos, bem como da sua proximidade com o governo de então. O mesmo decidiu agora, nos últimos dias, quanto aos depoimentos prestados por militares ouvidos na investigação dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, entendendo que por sua importância eles precisam ser do conhecimento público. Aliás, para citarmos sua atuação ao longo do ano passado, Alexandre de Moraes foi recordista em termos de trabalho no STF: proferiu nada menos do que 7.680 decisões monocráticas ou colegiadas. Não se pretende aqui fazer um apanhado completo da atuação deste ministro no Supremo. A intenção é apenas registrar o quanto a história muitas vezes se apoia em eventos de aparente insignificância para oferecer avanços inesperados. Ou para deter retrocessos. Basta pensarmos que, não fosse Marcela Temer tirar aquelas fotos, ou não fosse o hacker ter invadido seu celular, a probabilidade de estarmos ainda enfrentando um período de escuridão, com a extrema-direita no poder, seria bem maior. Que os livros ainda venham a fazer justiça ao papel indireto, porém fundamental, dessas duas figuras bastante secundárias: ela, de quem sempre se soube pouca coisa além do nome; e ele, de quem nem mesmo o nome chegou a ser conhecido pelo público. O bônus do autor começa com Você Não Vale Nada Mais Eu Gosto de Você, do grupo Calcinha Preta, em uma performance de Nando Reis com a companhia do grupo Os Infernais – como apropriada homenagem a quem indiretamente auxiliou nosso país. Depois é a vez de Vitor Kley, com a música Mundo Paralelo. https://www.youtube.com/watch?v=GaQ0fNcXrPk https://www.youtube.com/watch?v=QG6IGg9PMZ0 *Jornalista e blogueiro. Apresentador do programa Espaço Plural – Debates e Entrevistas, da RED. (**) O lírio d’água tem suas raízes no lodo existente em lagos e lagoas. É a flor de lótus, que se fecha durante a noite, mergulhando nas águas. Só que essa reclusão voluntária termina pouco antes do amanhecer, quando ela ressurge e se abre para a vida, outra vez na superfície. Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Os impactos da Covid-19 na dinâmica demográfica do RS nos anos recentes

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Os impactos da Covid-19 na dinâmica demográfica do RS nos anos recentes
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De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*, ALLAN LEMOS ROCHA** e KARLA JANAINA TEIXERA*** Apresentação O texto abaixo é a versão simplificada de um artigo escrito pelos três autores acima (Paiva, Rocha e Teixeira) no ano de 2022 acerca do impacto da COVID-19 na ocupação dos domicílios dos municípios do Litoral Norte durante a baixa temporada. O artigo foi produzido com vistas a contemplar uma demanda do Grupo de Pesquisas CNPq-FACCAT-UFRGS sobre o Litoral Norte do Rio Grande do Sul (doravante, GPLNRS), e a intenção dos autores era a de publicá-lo em alguma revista científica de circulação nacional. Infelizmente, o artigo padece dos problemas imanentes ao “pensamento fora da caixa”. Os pareceristas das revistas especializadas em temas de Turismo não aceitam a caracterização que a Economia faz do turismo. Para os economistas, o turista é aquele agente que recebe seus rendimentos de um determinado lugar (seja rendimentos do trabalho, seja aposentadoria, seja rendimentos de aplicações financeiras) e os dispende em outro lugar. A questão crucial, para a Economia, é que esse sujeito não ingressa no território como um ofertante (de mão-de-obra, de bens, de serviços, etc.), mas tão somente como demandante. Com isso ele amplia a renda e o emprego do território exercendo uma demanda que é autônoma, com relação à produção local. Infelizmente, esta perspectiva – que amplia sobremaneira a expressão social e econômica do turismo – contradiz a definição oficial de turismo, que restringe esta atividade a movimentos de deslocamento de pessoas por tempo restrito (não podendo ultrapassar um ano) em busca, fundamentalmente, de lazer, cultura e conhecimentos. Como adotamos a caracterização econômica do turismo, as revistas científicas sobre o tema recusaram nosso trabalho.  De outro lado – e a despeito de notáveis exceções – as revistas de Economia privilegiam as dimensões “macro” desse objeto. Os temas da microeconomia só são considerados relevantes se dizem respeito à organização industrial e suas relações com os processos inovativos. Turismo e demografia são temas considerados menores. Por fim, as revistas de Desenvolvimento Regional continuam apegadas à pauta culturalista que tomou conta dos debates no interior das assim chamadas “Ciências do Regional” desde a publicação do trabalho clássico de Robert Putnam sobre a Terceira Itália. Para que um artigo seja aceito é preciso, antes de mais nada, que ele proclame em alto e bom som que “desenvolvimento e crescimento não são sinônimos”. Como eu costumo dizer, o fato mesmo de que se solicite a reiteração desta obviedade só serve para atestar a imaturidade dessa área do conhecimento. Qualquer pai e qualquer mãe eram capazes de entender, desde sempre, que seus filhos podiam crescer sem se tornarem autônomos, assim como podiam amadurecer e se tornarem sujeitos capazes de autonomia a despeito do seu crescimento físico. Mas os retornos que recebemos diziam que essa distinção não era clara para os pareceristas. Num deles, lemos: “não fica claro se os autores consideram estar tratando de ‘crescimento’ ou ‘desenvolvimento’. Acreditávamos que o próprio tema - a mudança radical nos padrões de ocupação do território do Litoral Norte e as consequências dessa mudança para o perfil de trabalho e renda na região – falaria por si. Infelizmente, não era o caso. Como nosso objeto é turismo e demografia, definimos turismo de uma forma arrevesada, e nos recusamos a reiterar o que todos deveriam saber desde sempre, nosso artigo teve a honra de ser recusado em todas as revistas para as quais a enviamos. Nosso ímpeto inicial foi fazer tal como Marx e Engels decidiram fazer com o seu A Ideologia Alemã: entregar o texto à crítica roedora dos vírus de computador (são eles que roem os textos atualmente, não mais os ratos). Porém, a dinâmica da vida se impôs e no fez mudar de ideia. Mais especificamente, o avanço do projeto do Porto Meridional em Arroio do Sal. Há algumas semanas atrás, Paiva, Rocha e Campos publicaram um artigo nesse mesmo veículo demonstrando que o projeto de implantação do referido Porto não estava respeitando os critérios legalmente instituídos de avaliação dos impactos sociais, econômicos e ambientais, necessários para o adequado dimensionamento dos custos e benefícios da nova estrutura. Ao mesmo, tempo a análise dos dados preliminares do Censo Demográfico de 2022 vieram a mostrar que a dinâmica demográfica do RS é muito preocupante. Com exceção de uma única região: o Litoral Norte do RS. Em A disritmia sulina, dizemos que  Entre 2000 e 2022 a população brasileira cresceu 19,74% e a população gaúcha cresceu apenas 6,8%. Porém, nesse período, o Corede Litoral Norte, no RS, apresentou um crescimento populacional de 53,08%. Este crescimento espantoso foi capitaneado pela migração de aposentados (vale dizer, de pessoas de idade elevada) para o território. que adotaram o domicílio de veraneio como domicílio permanente. Este processo redundou, inicialmente, numa verdadeira revolução da estrutura etária dos domiciliados no Litoral, com o aumento significativo da percentagem da população idosa. Porém, o movimento inicial logo foi contrarrestado pela crescente imigração de jovens para a região. Por quê? Porque a população aposentada alimenta um desequilíbrio significativo entre oferta e demanda de bens e serviços. Pois trata-se de uma população com elevado poder de compra, com grande demanda por serviços (que é o setor mais empregador da economia) mas que não ingressa no território como ofertante, seja de bens, seja de serviços, seja de mão de obra. O desequilíbrio entre oferta e demanda que resulta deste movimento, se resolveu pela atração de empresas, empresários e trabalhadores em idade ativa para o Litoral. Na verdade, o crescimento da população gaúcha nos últimos anos só não foi negativo (tal como em 2/3 dos municípios gaúchos, inclusive sua capital, Porto Alegre) em função da atratividade que o Litoral Norte representa para aposentados e, por extensão, pela abertura de postos de trabalho nos setores de serviços voltados ao atendimento da população transmigrada. Ocorre que – como é óbvio – essa população transmigrada busca lazer, cultura, segurança e cuidados. E esses objetivos podem ser inconsistentes com os desdobramentos da instalação de um Porto no coração mesmo do Litoral Norte, entre os municípios de Torres, Capão da Canoa e Osório. É com base nessa preocupação que decidimos dar publicidade ao estudo de dois anos atrás. Apesar de não termos atualizado os dados, entendemos que eles são tão expressivos e seus fundamentos materiais são tão evidentes que o trabalho é mais atual do que nunca. Introdução  A hipótese estruturante desse trabalho é de que a ocupação da segunda residência foi ampliada ao longo do ano de 2020. Parcela dos veranistas teria adotado a segunda residência no litoral como residência principal no ano de 2020. Tal movimento teria por base a busca de isolamento, bem-estar e qualidade de vida durante a quarentena por dois tipos de agentes: 1) aposentados/idosos, mais vulneráveis durante a pandemia e com poucos vínculos sociais e obrigações profissionais; 2) cidadãos ainda plenamente produtivos, mas capazes de se beneficiar de sistemas de trabalho à distância. Nossa aposta é a de que se abre uma nova etapa no desenvolvimento do território, na medida em que a pandemia não deve ser entendida como um evento transitório, mas como um marco de transição para um “novo normal”. Uma vez que não existem pesquisas periódicas sobre ocupação dos domicílios com representatividade municipal, fomos obrigados a criar de proxies¹ para avaliar esta ocupação no litoral. As bases de dados utilizadas para esse trabalho foram: 1) a arrecadação municipal de ICMS - disponibilizada no Receita Dados da Secretaria da Fazenda do Estado do RS – e de ISS dos municípios do Litoral – disponibilizada no site do Tribunal de Contas do Estado do RS; 2) a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) e o Cadastro de Empregados e Desempregados (CAGED), disponibilizados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); e 3) os dados sobre utilização de ambulatórios e sistema hospitalar disponibilizados pelo Ministério da Saúde (MS) no Datasus.  As seções subsequentes deste trabalho voltam-se ao detalhamento da problemática e à apresentação dos resultados da pesquisa. A seção seguinte volta-se à apresentação da leitura do GPLNRS sobre o desenvolvimento socioeconômico do Litoral Norte do RS. Na terceira seção expomos os resultados da pesquisa. Na quarta seção apresentamos nossas conclusões.  Fundamentos da ocupação e da dinâmica socioeconômica do Litoral Norte do RS A ocupação, desenvolvimento socioeconômico e diversificação produtiva do Litoral Norte do RS teve como principal vetor o turismo de veraneio. Este padrão de ocupação e desenvolvimento é peculiar e diferencia o desenvolvimento da aglomeração urbana da orla oceânica do norte do RS das demais aglomerações urbanas litorâneas do Brasil. Numa avaliação superficial, poder-se-ia imaginar grande similaridade nos padrões gaúcho, paranaense e paulista de ocupação de suas orlas oceânicas. Afinal, estes são os três Estados brasileiros que, mesmo contando com ampla orla marítima, situam suas capitais no hinterland².  Não obstante, há mais diferenças do que similaridades na relação de Porto Alegre, São Paulo e Curitiba com as áreas litorâneas que lhes são próximas. A principal diferença encontra-se na função primariamente portuária de Santos e de Paranaguá (no PR). Estes foram os municípios que nuclearam inicialmente o turismo de veraneio e a indústria turística nas orlas de SP e PR. Mas eles também, contavam com outras funções econômicas. Tanto a infraestrutura de acesso aos mesmos (ferrovias e rodovias), quanto os sistemas de serviços (comércio, hotelaria, fornecimento de energia, serviços sanitários, etc.)  foram construídos primordialmente para atender os agentes que operavam os serviços portuários. Esta infraestrutura é prévia à indústria turística. E facilita sua emergência, ao permitir a diluição dos custos de operação (ou, melhor, dos custos de não-operação) na “baixa temporada”.  A ocupação e desenvolvimento econômico do litoral norte do RS é distinta. Não há qualquer porto natural ou baía no litoral norte do RS. O único porto natural do Estado encontra-se no canal de ligação da Laguna dos Patos ao Oceano Atlântico, no sul do Estado, onde se localiza o município e o porto de Rio Grande³. Tal como em outros Estados litorâneos, inicialmente a capital do RS foi situada neste porto marítimo. Mas a proximidade do território com o Prata e as recorrentes disputas entre Portugal e Espanha pela definição das fronteiras dos seus impérios coloniais nesta região impôs o deslocamento da capital para hinterland4. Como a Laguna dos Patos facilita a circulação de pessoas, tropas e mercadorias entre norte e sul do Estado, Porto Alegre foi situada ao norte da mesma, às margens do Lago Guaíba, que une – através da Laguna - o sistema de rios navegáveis em direção a Oeste (Jacuí e Taquari) e Norte (Gravataí, Sinos e Caí) ao Oceano Atlântico.  O deslocamento da capital do Estado para o norte, a uma distância significativa do único porto marítimo do RS foi plena de consequências. Desde logo, o mercado consumidor e o sistema de serviços da capital contribuíram para o desenvolvimento dos municípios do norte, sejam aqueles situados no seu entorno, sejam aqueles que, mesmo mais distantes, eram beneficiados pelo acesso ao rico e complexo sistema hidroviário que deságua no Lago Guaíba. Além disso, a porção norte do Estado – caracterizada por terrenos dobrados e acidentados e pela densidade da vegetação florestal – tornou-se o núcleo dos programas de colonização e reforma agrária do Império e da Primeira República. O resultado final foi a emergência de um conjunto de municípios prósperos, que contavam com uma “classe média” relativamente ampla, situados a poucos quilômetros do mar, mas a uma grande distância do único porto marítimo do Estado.  O principal desdobramento deste quadro é que a ocupação econômica do Litoral Norte, vai ter início com base em atividades voltadas exclusivamente para o turismo de veraneio5.  Não gratuitamente, o desenvolvimento do território foi lento e tardio, se comparado com outras porções do RS. Não obstante, ele foi alavancado por dois outros elementos: 1) a elevada inflação dos anos 50 e 60 e a lei da usura vigente até meados dos anos 60 (e que impedia a cobrança e o pagamento de juros acima de 12% ao ano); e 2) a precoce consolidação do funcionalismo público e do sistema de educação no RS. O primeiro fator explica a aversão das famílias aptas a poupar a realizarem aplicações no sistema financeiro formal, que proporcionavam rendimentos inferiores à inflação. No RS – como no conjunto do Brasil – as famílias superavitárias passaram a destinar uma parcela crescente de suas poupanças a aplicações em ativos reais: terras, terrenos e imóveis urbanos. O elemento diferenciador do RS diz respeito à expressão relativamente maior de um agente poupador de recursos módicos: o funcionário público. Dentre estes, o típico poupador de classe média no RS será o profissional do sistema de ensino público estadual. Na esteira da tradição positivista inaugurada por Júlio de Castilhos (e consolidada por Borges de Medeiros, Getúlio Vargas e Leonel Brizola), o funcionalismo público ligado ao sistema educacional do RS era relativamente mais amplo e mais bem remunerado do que seus similares em outros Estados do país. Além disso, este corpo de funcionários estava situado primordialmente nos municípios mais populosos da “Metade Norte” do RS. E era um segmento com formação educacional acima da média e, portanto, com maior capacidade de avaliar os riscos e benefícios dos investimentos. Por fim, sua capacidade de poupança e de consumo era relativamente limitada. O que tornava particularmente atraentes aquisições de terrenos a custos baixos (pequenos lotes de “areia” à beira-mar), com elevado potencial de valorização e que, na pior hipótese, poderiam se tornar a base de um lazer seguro e barato. Este complexo conjunto de conexões viria a dar sustentação ao desenvolvimento de uma indústria turística peculiar no litoral norte do RS. Uma indústria turística associada, primariamente a negócios imobiliários (no sentido mais amplo do termo, envolvendo a incorporação, beneficiamento e venda de terrenos e à construção civil, com ênfase na construção de residências) e apenas secundariamente à hotelaria e a investimentos em setores ligados ao lazer e à produção cultural6.  Com o gradual envelhecimento da população proprietária, parcela crescente de aposentados passou a estender seu período de permanência na praia. Emergiu uma nova categoria de turista: os turistas permanentes. Eles são turistas em sentido econômico. Como qualquer turista, auferem suas rendas em um território externo àquele em que realizam seus dispêndios. São “turistas” porque mobilizam as atividades econômicas com um rendimento que é exógeno. Mas, contraditoriamente, são “permanentes” na medida em que tomam a segunda residência como aquela onde despendem a maior parte do ano7. O desenvolvimento da indústria turística de veraneio baseada em “segunda residência” não é uma peculiaridade do RS. Em importante pesquisa sobre o tema, Tadeu Arrais (2013) nos lembra que “em 2010 ... havia 3.932.990 domicílios de uso ocasional, correspondendo a 5,82% do total de domicílios brasileiros.” Porém, este mesmo autor vai confirmar a peculiaridade do caso gaúcho ao afirmar que “há estados onde essa média é superior, como no RS, onde os domicílios de uso ocasional representaram 7,23% do total”8. E o autor vai além. Segundo ele  “A quase totalidade dos municípios com porcentagem acima de 40% de domicílios de uso ocasional concentra-se na região Sul e Sudeste, sendo os estados de São Paulo e RS aqueles com maiores registros de municípios com maior participação relativa. No RS identifica-se uma extensa linha costeira com as maiores ocorrências relativas do país. Os cinco municípios com maior participação relativa (Imbé, Xangri-lá, Balneário Pinhal, Arroio do Sal e Palmares do Sul) do território brasileiro somavam, em 2010, 70.908 domicílios de uso ocasional. Todos se localizam na faixa litorânea do RS. Em alguns desses municípios o número de domicílios de uso ocasionais, em 2010, foi maior que o total da população residente, como Imbé (RS), que registrou 18.848 domicílios de uso ocasional e uma população total residente de 17.667 pessoas naquele ano.” (Arrais, 2013, p. 31) O turismo “de segunda residência” envolve uma dimensão pendular que complexifica a distinção entre “turistas de veraneio” e “turistas permanentes”. Esta transição, nem é simples, nem ocorre numa temporalidade clara e bem determinada. Por isto mesmo, alguns autores preferem classificar todo o turismo de “segunda residência” como pendular. Esta é a concepção de Branco, Firkoeski e Moura (2005), bem como de Coriolano e Fernandes (2012). Não obstante, Coriolano e Fernandes, abrem espaço para a distinção consagrada nos debates e textos do GPLNRS ao afirmarem que "nos lugares onde o turismo melhor se estruturou os deslocamentos sazonais se tornaram migrações definitivas"9. Do nosso ponto de vista, não existe, a rigor, qualquer controvérsia. A contradição se desfaz se admitimos que as categorias de “turista”, “residência” e “permanência” são dialeticamente contraditórias. O turista, a princípio, não possui residência no local que visita, nem pode vir a tomar este território como domicílio. Mas é preciso superar a aversão à contradição dialética se quisermos entender um fenômeno tão disseminado no Brasil e que se apresenta de forma intensa no RS.  Da perspectiva do GPLNRS, é turista todo o agente que despende seus rendimentos em um território distinto daquele em que os auferiu. Esta determinação de ordem conceitual já pressupõe algum nível de “pendularidade”. O turista está sempre associado a pelo menos dois territórios: aquele que lhe proporciona rendimentos e aquele onde despende parte dos mesmos. Esta duplicidade desdobra-se necessariamente em algum grau de movimentação pendular.  Não obstante, parece-nos importante reconhecer as diferenças que se manifestam no interior desta unidade fundamental e que estão associadas ao maior ou menor período que o turista ocupa o território visitado. Esta distinção é particularmente relevante para o planejamento do desenvolvimento daqueles territórios onde o turismo está baseado na segunda residência.  A peculiar dinâmica econômica do Litoral no ano de 2020 Nosso objetivo é avaliar a performance do Litoral em relação à performance do Estado. Assim, tomamos, como regra geral, a evolução das variáveis em termos relativos. Os resultados mais impactantes advieram da análise da evolução relativa da arrecadação de ICMS, reproduzida no Quadro 1, abaixo. [caption id="attachment_14321" align="aligncenter" width="536"] Clique na imagem para melhor visualização[/caption] O primeiro a observar sobre o Quadro 1 é que a taxa de crescimento da arrecadação de ICMS foi realizada a partir da comparação dos valores nominais arrecadados em 2019 e 2020. Na medida em que a inflação de 2020 foi expressiva, o crescimento nominal foi inferior ao crescimento real. Só não realizamos a indexação dos valores por uma razão: a discrepância entre os índices de preços no Brasil de 2020 foi muito elevada. O Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA-IBGE) apresentou crescimento médio de 4,52% no Brasil, enquanto o Índice de Preços do Atacado (como o IPA-FGV) apontou uma inflação média de 31,73% no ano de 2020. Que indexador usar para avaliar a performance das finanças públicas? Na dúvida, optamos por trabalhar com os dados nominais alertando para o fato de qualquer resultado positivo inferior a 5% expressa recuo na arrecadação real. As comparações entre a dinâmica de arrecadação de municípios e regiões foram realizadas para quatro períodos distintos dos anos de 2020 e 2019: 1) o acumulado dos doze meses; 2) os primeiros 11 meses dos dois anos referidos; 3) o período entre março e novembro; 4) o período entre abril e outubro. Estes quatro períodos foram definidos com vistas a contemplar os seguintes critérios: 1) a base anual é a base convencional de comparação; 2) o mês de dezembro de 2020 foi atípico para o turismo do litoral, pois parcela dos veranistas usuais evitou a praia na pandemia; 3) os reflexos da pandemia sobre a ocupação das segundas residências do litoral gaúcho em 2020 só poderia atingir proporções significativas a partir do mês de março de 2020, quando são diagnosticados os primeiros casos de Covid no Brasil; 4) o período entre abril e outubro de 2020 corresponde, simultaneamente, ao ciclo da primeira onda do Covid-19 no Brasil e ao período que, tradicionalmente, é visto como a “baixa temporada” no veraneio do litoral norte. Por fim, cabe observar que, para além do RS como um todo, tomamos os seis municípios com maior participação na arrecadação estadual de ICMS – Canoas, São Leopoldo, Porto Alegre, Triunfo, Caxias do Sul e Passo Fundo – como como referência de comparação com o Litoral. A variação nominal do ICMS arrecadado pelo RS em 2020 com relação a 2019 foi inferior à variação de qualquer índice de preços do período. Vale dizer: a arrecadação estadual de ICMS sofreu uma queda em termos reais. Mas o mesmo não se dá com a arrecadação média do Litoral. Mesmo quando tomamos a variação de todo o ano – incluindo na comparação os meses de dezembro de 2020 e 2019 – a elevação da arrecadação nominal de ICMS no Litoral Norte supera os 20%. Vale dizer: supera, com folga, a variação do IPCA e fica pouco abaixo da variação do IPA. Mas é no período de “baixa temporada” e “alta do Covid” que as diferenças se expressam de forma mais radical. Entre os meses de abril e outubro de 2020, a queda nominal na arrecadação de ICMS no RS foi de -3,01%. No mesmo período, o conjunto dos municípios do Corede Litoral geraram um valor nominal 29,8% superior ao gerado no mesmo período do ano anterior. O município Balneário Pinhal chega a duplicar sua arrecadação neste período de 2020, em comparação com o mesmo período do ano passado.  Se tomamos todo o ano de 2020, apenas dois municípios do Litoral apresentam uma performance de arrecadação inferior à média do Estado: Torres e Caraá10. No caso de Torres, a perda relativa de arrecadação está baseada na queda vertiginosa da arrecadação de dezembro de 2020 em relação a dezembro de 2019. Tal como se pode ver no Quadro 1, o desempenho de Torres supera o desempenho do Estado em qualquer outro período que não o ano integral. A explicação para o fenômeno encontra-se na maior expressão do turismo hoteleiro (por oposição ao turismo de segunda residência) em Torres, quando comparado a qualquer outro município do Litoral Norte do RS. Aparentemente, no “ano do Covid”, a demanda pelo litoral sofreu uma alteração muito significativa: ela foi mais elevada nos meses de baixa temporada. Mas sofreu uma queda relativa - quando comparada com a demanda do mesmo mês no ano anterior - justamente no mês de dezembro, que marca o início do veraneio. Torres foi o município mais impactado por este processo; mas a diferença de desempenho entre o conjunto do Litoral e Estado como um todo cai relativamente quando incorporamos os meses de dezembro de 2020 e de 2019 à comparação (veja-se a primeira coluna numérica no Quadro 1). As informações sobre a evolução da arrecadação de Imposto Sobre Serviços (ISS) no Quadro 2, abaixo, confirmam os resultados do Quadro 1. Selecionamos uma amostra do Litoral (aqueles com maior arrecadação) e comparamos com a dinâmica de arrecadação dos seis municípios gaúchos com maior arrecadação. A despeito da performance negativa de Tramandaí e Torres, confirmou-se a hipótese de que a dinâmica econômica do Litoral foi superior à dinâmica econômica dos principais polos de serviços do restante do RS. [caption id="attachment_14322" align="aligncenter" width="591"] Clique na imagem para melhor visualização[/caption] Para além da evolução da arrecadação tributária, analisamos a evolução do emprego formal (com base nos dados da RAIS e do CAGED do MTE) no Litoral e no restante do Estado ao longo de 2019 e 2020. Os resultados preliminares referendaram nossa hipótese: o RS sofreu uma perda de postos de trabalho formal entre 31 de dezembro de 2019 e 31 de dezembro de 2020 (-22.056 postos), enquanto o litoral apresentou um crescimento no mesmo período (472 postos). Não obstante, a divergência de movimentos foi inferior àquele que esperávamos encontrar. A queda do emprego formal no Estado foi de apenas -0,87% e o crescimento no Litoral foi de mero 0,80%.  Este resultado nos levou a avaliar os dados de emprego por uma nova ótica. Desde logo, é preciso entender que a sazonalidade da economia do litoral levou ao desenvolvimento de relações de trabalho marcadas por um grau elevado de informalidade. Além disso, a pandemia afetou fortemente o mercado de trabalho em 2020. A incerteza acerca da sustentabilidade da demanda sobre serviços e comércio nos meses de “baixa temporada” era elevada. E os índices de desemprego cresceram drasticamente nos anos recentes e, de forma ainda mais acentuada, em 2020. Some-se a isto as reformas trabalhista, sindical e previdenciária levadas a cabo recentemente e teremos um padrão funcionamento do mercado de trabalho no Brasil profundamente alterado. Estas alterações impactaram os distintos territórios de forma diferenciada. Ainda não temos análises dos rebatimentos territoriais diferenciados, mas é razoável supor que a informalidade cresceu mais em territórios que já eram marcados por relações contratuais relativamente fluídas e instáveis. Por fim, a base de cálculo do Emprego e Desemprego do CAGED sofreu mudanças metodológicas recentemente, o que tem gerado polêmicas acerca da consistência de comparações entre 2020 e os anos anteriores11. Estes argumentos nos estimularam a observar os dados do CAGED por um outro enfoque. Em primeiro lugar, ao invés de tomar o saldo final, calculamos a média do emprego em todo o período12. Também recalculamos o emprego de cada mês. O CAGED informa o número de empregados ao final do mês. Por oposição, atribuímos a cada mês o valor médio entre o estoque do mês anterior (que corresponde ao início do mês corrente) e o estoque ao final do mês sob análise. Com este dado, calculamos dois indicadores: 1) a taxa de variação da média de contratos entre distintos períodos de 2020 e seus equivalentes em 2019; 2) a taxa de variação da participação média dos territórios na média do emprego estadual. Ora este segundo indicador não nos permite contrapor a dinâmica do Litoral à dinâmica do Estado. Por definição, a participação do RS no emprego estadual é de 100%. E a taxa de variação de sua participação será nula. Assim, para efeito de comparação com a dinâmica do Litoral Norte, tomamos quatro outras referências: 1) os 13 municípios mais empregadores no RS (responsáveis por aproximadamente 50% das ocupações formais no Estado); 2) os 248 municípios menos empregadores do Estado (abaixo da mediana: o RS conta com 497 municípios); e 3) os 215 municípios restantes (retirados os 21 municípios do Litoral, os 13 mais empregadores e os 248 abaixo da mediana). Além disso, dividimos os municípios do Litoral em três grupos: 1) todos os 21 municípios da região do Conselho Regional de Desenvolvimento Litoral; 2) todos os municípios do Corede, com exceção de Osório e Torres (que são altamente empregadores, mas cuja dinâmica econômica não se vincula apenas ao turismo de veraneio: eles cumprem funções de polo de serviços em geral e logísticos em particular); e 3) os cinco municípios com maior participação relativa de imóveis para segunda residência em todo o Brasil (segundo os cálculos de Tadeu Arrais): Imbé, Xangri-lá, Balneário Pinhal, Arroio do Sal e Palmares do Sul.  [caption id="attachment_14323" align="aligncenter" width="586"] Clique na imagem para melhor visualização[/caption] O RS apresenta variação negativa do emprego em todos os períodos considerados. O mesmo se passa com o Litoral tomado como um todo no novo padrão de cômputo de informações que adotamos. Porém, as quedas do Litoral são menos pronunciadas, de sorte que a região ganha participação relativa no emprego estadual em todos os períodos. Quando subtraímos os dois principais polos regionais que são cortados pela BR-101 e cujas economias são influenciadas por esta artéria logística - Osório e Torres -, o emprego médio em 2020 no litoral mostra-se maior do que em 2019. Excetuado o período de baixíssima temporada, entre abril e outubro. Justamente aquele período em que o crescimento da arrecadação do ICMS no litoral foi o mais elevado. Isto é, sem dúvida, surpreendente e, do nosso ponto de vista, é um indício de que a tolerância do território com relações trabalhistas informais é elevada. Seja como for, a discrepância entre a dinâmica do emprego e da arrecadação desaparece quando tomamos exclusivamente aqueles cinco municípios do Corede Litoral com maior número de “segundas residências” por habitante de todo o Brasil: Xangri-lá, Imbé, Palmares do Sul, Balneário Pinhal e Arroio do Sal. Estes municípios não são atravessados pela BR-101 e os vínculos de suas economias com os serviços logísticos (fortemente afetados pela pandemia em 2020) são irrisórios. É dentre eles que o crescimento do emprego formal ao longo do ano de 2020 manifesta-se de forma mais clara. Observemos agora a dinâmica do emprego nos demais municípios do RS. A queda mais pronunciada ocorreu nos 13 municípios mais populosos. Nestes, há queda da ocupação e da participação no emprego estadual nos quatro períodos considerados. Nos 215 municípios intermediários, houve queda da ocupação em todos os períodos. Mas ela foi sempre inferior à queda observada no Estado como um todo e superior à queda observada no litoral (seja qual for a agregação municipal).  Por oposição, os 248 municípios menos empregadores do RS apresentaram crescimento no número total de vínculos formais e, por extensão, sua participação no emprego estadual cresceu nos quatro períodos considerados. Estes municípios são, como regra geral, municípios “rurais” que vêm apresentando taxas negativas de crescimento populacional. Parcela expressiva de sua população é composta de agricultores familiares, cuja ocupação não é objeto de registro no sistema RAIS-CAGED. O resultado é que a participação destes 248 municípios no emprego total do Estado (em torno de 2,85%) é pouco superior à participação dos 21 municípios do Corede Litoral (2,17%). Aparentemente, eles também foram alvo de “migração pendular” no ano de 2020, em função do desemprego nos municípios mais populosos e da busca de distanciamento social. E parte dos “retornantes” conquistou vínculos empregatícios formais. Porém é preciso observar que, excetuado o período abril-outubro, o crescimento do emprego nos municípios “rurais” foi menor do que no conjunto do Corede Litoral, quando excluímos os polos de Osório e Torres. Ainda mais importante: a variação foi significativamente inferior àquela apresentada pelos cinco municípios do litoral gaúcho com maior número de “segundas residências” por habitante de todo o Brasil. Tomados em conjunto, os 476 municípios do RS que não se encontram no Corede Litoral apresentaram queda no emprego médio ao longo de 2020 e queda na participação no emprego estadual. Tal como vimos observando, a divergência de movimentos é menos expressiva do que seria de se esperar tendo em vista as informações sobre arrecadação tributária. Mas, de qualquer forma, elas confirmam nossa hipótese original.  Por fim, cabe uma breve consideração sobre as informações obtidas na base de dados do Sistema Único de Saúde, o Datasus. Ao contrário do que esperávamos, não houve qualquer ampliação de demanda sobre os serviços ambulatoriais do Litoral. Na verdade, houve uma queda relativa. No ano do Covid, houve uma queda na demanda sobre serviços ambulatoriais e hospitalares no Litoral Norte do RS. Num primeiro momento este resultado nos surpreendeu. E ele só foi adequadamente interpretado a partir de entrevistas com profissionais da área de saúde que operam no litoral e na capital do Estado. A resposta para o (aparente) enigma é simples e já a possuíamos: tanto o turismo “de veraneio” quanto o turismo “permanente” comportam dimensões de pendularidade. Aqueles que migraram para o Litoral em busca de segurança no ano do Covid não alteraram suas rotinas médico-ambulatoriais: mantiveram seus vínculos com os profissionais dos municípios de origem. Além disso, o ano da pandemia foi um ano de pressão sobre o sistema hospitalar e ambulatorial de maior resolutividade. E este sistema está localizado na Região Metropolitana de Porto Alegre, a poucos quilômetros do litoral. Na verdade, no primeiro ano da pandemia, aqueles que migraram para suas segundas residências com vistas a garantir maior distanciamento social evitaram os ambulatórios de baixa resolutividade justamente por serem espaços onde os riscos de contaminação eram particularmente elevados. Considerações finais  Ao contrário do que se poderia imaginar, a questão da evolução das formas de turismo no Corede Litoral – do “veraneio-pendular” em direção ao “permanente” – não é uma questão de interesse exclusivamente local. Esta é uma questão chave para o desenvolvimento do Estado. Vivemos uma acelerada transição na pirâmide etária no RS. Com o menor crescimento vegetativo populacional e com saldos líquidos negativos na balança migratória, nossa taxa de crescimento demográfico é a menor do país há décadas. Não há economia capaz de crescer baseada apenas no mercado externo. Quer recebam seus rendimentos de Brasília, quer os recebam do Tesouro Estadual, a renda dos aposentados é parte crucial da demanda interna do RS. E o desenvolvimento dos meios de transporte e locomoção vem ampliando a atratividade de destinos alternativos para o turismo permanente, em direção à Santa Catarina e ao Uruguai. Daí a relevância de uma avaliação profunda desta dinâmica.  A divergência entre a evolução da arrecadação tributária no Litoral e no restante do Estado demonstrou que a pandemia levou a um novo padrão de utilização da residência de veraneio. O fato dessa diferença ser particularmente elevada entre abril e outubro de 2020 e 2019 é a prova maior do fenômeno. Os dados sobre a evolução do ISS e do emprego formal confirmaram as inferências extraídas da análise da evolução do ICMS. Porém, estas bases de dados trouxeram uma nova questão: a divergência dinâmica que elas apresentavam foi menos expressiva do que a apontada pelos indicadores da Receita Estadual. Por quê? No que diz respeito à evolução do emprego formal ao longo de 2020, os dados preliminares indicam que a informalidade no litoral do RS é mais elevada do que no conjunto do Estado e se aprofundou em 2020. Este ponto merece consideração pelo setor público. Igualmente bem dever se aprofundar o estudo e interpretação da evolução da demanda ambulatorial e hospitalar na região. O fato de que não tenha havido qualquer crescimento na demanda sobre este sistema no primeiro ano da pandemia parece indicar que a confiança no sistema de saúde do território é relativamente baixa entre seus potenciais usuários. É notório que as relações entre médicos e pacientes são baseadas na confiança e estruturadas no longo prazo. Mas também é verdade que um sistema de saúde de alta reputação tende a ser alvo de demandas extraordinárias em períodos de excepcionalidade. O enfrentamento deste gargalo parece-nos essencial para a atração e fixação na região de proprietários de segunda residência já aposentados e habilitados a passarem da condição de “veranistas” para “turistas permanentes”.  *Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica e Professor do PPGDR-Faccat. **Estatístico, Mestre em Planejamento Urbano e Regional e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica. ***Advogada e Mestre em Desenvolvimento Regional. ¹Proxies são variáveis que funcionam como “representantes” ou “substitutas” das variáveis cuja dinâmica busca-se efetivamente avaliar. ²O Brasil conta com 27 Unidades Federativas, dentre as quais 17 contam com costa marítima. Destas, treze têm sua capital à beira mar. Para além dos já citados, a quarta exceção é Piauí. Porém, a área costeira deste último Estado é a menor do país (66 km). E sua história de ocupação e desenvolvimento econômico é muito peculiar. Não cabe nos horizontes deste trabalho ingressar na mesma. ³Sequer este único porto “natural” é propriamente um harbour (cuja etimologia está associada à ideia de refúgio e concha, tanto a home/casa, quanto a armour/armadura). Nossa única “baía” localiza-se na Foz da Laguna dos Patos, que libera as águas dos rios mais caudalosos do RS. Além disso, o litoral sul do RS é o ponto de encontro de duas correntes marítimas opostas (oriundas do Polo Sul e do Equador). A entrada na barra sempre foi difícil e inúmeros naufrágios ocorreram no local. Após a instalação do sistema de molhes, em 1911, os perigos diminuíram. Mas mesmo hoje o ingresso de navios no Porto usualmente é feito com o apoio de navios rebocadores.  4Que levaram, inclusive, à ocupação do município e de todo o sul do RS pela Espanha entre 1763 e 1776. A retomada do município se deu através da maior batalha naval da história de Portugal e Espanha. A este respeito, veja-se Golin (2015). 5Há uma única exceção a esta regra geral: o município de Torres que, situado no extremo norte do litoral gaúcho, às margens do Rio Mampituba, na divisa com Santa Catarina. A povoação inicial de Torres foi estimulada pelo Estado para instalação da principal alfândega interestadual na virada do século XVIII para o XIX.  6A peculiaridade do turismo de veraneio do litoral norte do RS é atestada pelo fato de que a maior parte dos municípios desta região não serem caracterizados como “turísticos” de acordo com os critérios definidos pela ONU e adotados pelo Ministério do Turismo brasileiro.  7Sobre a categoria “turista permanente”, veja-se Paiva (2013), Duarte (2015) e Gomes (2020). 8Arrais, 2013, p. 28. 9Coriolano e Fernandes, 2015, p.9. 10A dinâmica cronicamente negativa de Caraá mereceria um estudo mais detalhado. Mas desde logo ela parece estar associada ao dinamismo peculiar do litoral em 2020. Caraá é uma das principais fontes de mão de obra sazonal para o litoral. Como a atividade econômica foi ampliada nos meses de inverno, a mão de obra caraense que, usualmente retornava para o município, parece não haver realizado o retorno com a mesma intensidade. 11A este respeito, veja-se Drummond, 2021. 12Ao contrário da arrecadação tributária, que é uma variável de fluxo, o número de empregados formais é uma variável de estoque. Para variáveis de fluxo, somamos os valores a cada mês para obter o valor do ano. Mas o emprego total do ano não é a soma do emprego total a cada mês. E a comparação dos estoques finais não traz qualquer informação sobre a dinâmica efetiva do emprego ao longo do período. Imagem em Pixabay. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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Coronel Cid, fake news e o Plano Cohen

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Coronel Cid, fake news e o Plano Cohen
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De CARLOS R. WINCKLER* Gravações do coronel Cid, com forte odor de fake news produzidas em porões, tem um único propósito: desacreditar a PF e o STF. A chusma miliciana, lumpen fascista, pode ser conduzida ao sacrifício necessário. Como desacreditar a investigação e responsabilização de militares? Houve exageros, mas nada que um registro anódino na folha funcional não resolva. Já não andam fazendo juras de amor eterno à democracia e que salvaram o Brasil? Qualquer dia criarão a medalha de Salvadores da Pátria. Divisões inteiras serão agraciadas.Talvez 8 de janeiro se torne um dia de homenagens às Forças Armadas quando impávidamente resistiram nos quartéis cercados. Essa a questão. Cid com a gravação perderá concessões da delação premiada. Mas no futuro, caso se realize o pior dos cenários - a anistia - o coronel ressurgirá como herói martirizado. Outros militares se reerguerão imaculados das cinzas. Ou sobreviverão, com as devidas vantagens mantidas, discretamente. A rigor o coronel Cid repete com ares de modernidade e tragicomédia fascista o capitão Mourão, autor do Plano Cohen** de 1937, que chegou a general, participou do golpe militar de 1964 e na reserva foi presidente da Petrobras. Uma carreira de sucesso. *Sociólogo. Graduado em Letras e Direito, com especialização em Mídia e Sociedade. **https://brasilescola.uol.com.br/historiab/plano-cohen.htm . Imagem em Pixabay. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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O Brasil não cabe no jardim da Europa

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O Brasil não cabe no jardim da Europa
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De PAULO NOGUEIRA BATISTA JR* Para Helena, neta primogênita, que deu origem ao título deste artigo O leitor ou leitora que me acompanhe um pouco não estranhará o título deste artigo, uma variante do título do meu livro mais recente, “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Se não cabe no quintal de ninguém, como caberia no jardim da Europa? Quando a primeira edição do livro foi lançada, em 2019, Helena, a minha neta mais velha, na época com oito anos, disse que o livro se chamava “O Brasil não cabe no jardim de ninguém”. Helena atirou no que viu e acertou no que não viu. Hoje, o importante é lembrar que o Brasil não cabe, especificamente, no jardim da Europa. Por que “jardim da Europa”? E por que dizer que o Brasil não cabe aí? Vamos por partes, como faria Jack, o Estripador.  O sr. Josep Borrell, que vem a ser nada mais nada menos que “o alto representante da União Europeia para os negócios estrangeiros”, declarou que a Europa é um “jardim” e o resto do mundo “majoritariamente uma selva”. O sentido desse tipo de afirmação é, como se sabe, argumentar que os europeus precisam proteger o seu “jardim”, isto é, a sua sociedade ultra confortável e privilegiada, do assédio dos estrangeiros de várias origens, destacadamente os imigrantes oriundos da África e do Oriente Médio, de um lado, e o imperialismo da Rússia expansionista, de outro. É duvidoso que os imigrantes sejam prejudiciais à Europa e que a Rússia seja, de fato, expansionista. Mas é assim que pensa atualmente a maioria dos europeus, ainda que nem todos sejam francos como Borrell.  Pois bem. Vejam vocês a contradição. Os europeus, tão ciosos do seu espaço e da sua soberania, dão-se o direito de continuarem imperialistas no trato com países em desenvolvimento pouco conscientes dos seus interesses nacionais. A Comissão Europeia continua lutando por um acordo de tipo neoliberal e neocolonial com o Mercosul. Como boa parte das camadas dirigentes brasileiras cabe, sim, no quintal (ou jardim) de qualquer um, não tivemos até agora, mesmo no governo atual, a clareza e a coragem de abandonar essa negociação problemática, para dizer o mínimo Aqui há um aparente paradoxo. Se o acordo Mercosul/União Europeia é realmente tão favorável à parte europeia, como explicar que uma parte expressiva dos europeus se oponha ferrenhamente a esse acordo? Tento explicar sinteticamente.  Um dos traços centrais do acordo com a União Europeia, e daí o seu caráter neocolonial, é ajudar a perpetuar uma divisão internacional clássica do trabalho, que reserva às nações desenvolvidas, como as europeias, a produção e exportação de bens industriais e às nações em desenvolvimento, como as sul-americanas, o papel de exportadoras de produtos agrícolas e minerais. O acordo abre os mercados de bens industriais do Mercosul à livre entrada de produtos da União Europeia – uma concorrência desigual dada a superioridade das corporações alemãs e outras. As concessões que nos são feitas, ainda que limitadas, beneficiam sobretudo as exportações agrícolas do Mercosul. No entanto, por causa, das resistências de países como a França, Polônia, Bélgica e Irlanda, cujos agricultores temem a competição livre com os sul-americanos, o acordo mantém um regime protecionista na agricultura, baseado em quotas por produtos. Dentro desse regime, o acordo proporciona pouco acesso adicional para o Mercosul. Não é surpreendente, assim, que a Alemanha seja muito favorável ao acordo, que aumenta o mercado externo para suas corporações industriais. Nem que a França e os outros países se mostrem muito resistentes. As parcas concessões feitas ao Mercosul em matéria de acesso adicional para suas exportações agrícolas têm impacto concentrado nos países cujos agricultura não consegue enfrentar de peito aberto a concorrência do Brasil e da Argentina nessa área. Mesmo limitadas, as concessões que obtivemos são vistas como perigosas por esses países.  Vive la France, portanto. Graças fundamentalmente a ela, pode ser que esse acordo desigual não seja concluído. O presidente francês, Emmanuel Macron, estará em breve em visita oficial ao Brasil, dos dias 26 a 28 de março. Vamos recebê-lo efusivamente, por favor! Já que os negociadores do Mercosul não conseguem defender os interesses nacionais adequadamente, contemos pelo menos com os franceses para barrar algo que não nos convém.  Podemos contar com o presidente Lula? Espero que esteja errado, mas parece que não. Por ocasião da vinda ao Brasil do presidente da Espanha, Pedro Sánchez, outro defensor do acordo, Lula decepcionou. Vejam o que ele disse: “"Nós ainda vamos assinar esse acordo para o bem do Mercosul e para o bem da União Europeia. A União Europeia precisa desse acordo. O Brasil precisa desse acordo. Não é mais uma questão de querer ou não querer, de gostar ou não gostar. Precisamos politicamente, economicamente e geograficamente fazer esse acordo, precisamos dar um sinal para o mundo de que queremos andar para frente. Por isso estou otimista." Francamente! Não foi para isso que fizemos o “L”. Pelos motivos acima mencionados, mas também por vários outros que já expliquei em artigos anteriores, o acordo não nos serve e, pior, nos prejudica gravemente. Destaco os seguintes problemas adicionais.  As condições ambientais introduzidas pelos europeus, uma forma de “protecionismo verde”, restringem ainda mais o acesso ao mercado europeu. Chega-se ao ponto de pretender que as limitadas concessões feitas a nossos produtos agrícolas possam ser suspensas ou retiradas, se as cláusulas ambientais forem desrespeitadas por nós. O acordo não proporciona efetivo acesso adicional aos mercados europeus para nossos produtos industriais. As tarifas sobre importações industriais já são muito baixas na União Europeu; zerá-las não faria grande diferença. E, de qualquer modo, nossas indústrias muito raramente se mostram competitivas com as europeias. A abertura tarifária do Mercosul atinge não só a indústria, mas também a agricultura familiar, que terá dificuldade de competir sem barreiras com produtos europeus. O acordo proíbe impostos de exportação, com algumas poucas exceções que os negociadores brasileiros estariam tentando assegurar. Esse é um instrumento de política econômica que hoje podemos usar livremente e que ficaria restringido, caso o acordo seja concluído. O acordo força a abertura das compras governamentais a produtores europeus, em muitos casos mais competitivos que os nossos. O governo atual teria conseguido abrandar esse aspecto problemático do acordo, mas não se sabe se resolveu a questão inteiramente.  Faço uma ressalva. As negociações foram conduzidas desde 2023 sem transparência. Não sabemos exatamente o que o Mercosul conseguiu alterar no péssimo acordo negociado por Bolsonaro e Macri em 2019. Note-se, entretanto, que o governo Lula se limitou a controlar estragos, propondo ajustes pontuais no acordo herdado do governo anterior.  A pergunta que não quer calar, repito, é a seguinte: O que ganhamos com esse acordo? As nossas exportações aumentarão com o acordo? Já sabemos que não, pois as concessões europeias foram limitadas na área agrícola em que somos competitivos. Aumentarão os investimentos estrangeiros aqui? O acordo fará pouca ou nenhuma diferença nesse terreno. Um possível efeito positivo sobre investimentos de uma “melhora da confiança” é, como sempre, mera conjectura. O acordo pode, inclusive, reduzir investimentos europeus no Mercosul. Para que produzir aqui, se eles podem abastecer o nosso mercado livremente a partir do seu território?  Fica difícil, assim, entender a insistência do governo em concluir essa negociação. Uma explicação possível é que se considere politicamente importante a aproximação com a Europa. Se é isso mesmo, há um equívoco fundamental. Aproximação, sim. Subordinação, não. Não era para ser soberana a integração internacional da economia brasileira?  Além disso, é preciso ter claro que abandonar esse acordo não significa de modo algum romper com a União Europeia ou distanciar-se dela. A Europa continuará a ser um dos principais parceiros econômicos e políticos do Brasil e do Mercosul. As relações com eles continuarão fortes e poderão até ser aprofundadas, independentemente de acordos desiguais desse tipo. *Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021. E-mail: paulonbjr@hotmail.com Twitter: @paulonbjr Canal YouTube: youtube.nogueirabatista.com.br Portal: www.nogueirabatista.com.br Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista Carta Capital. Imagem em Pixabay. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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O sonho segue vivo – e necessário, estúpido!

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O sonho segue vivo – e necessário, estúpido!
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De SANDRA BITENCOURT* O sonho acabou? Ele, o operário-presidente, não é mais o cara? Lula anda falando muita bobagem? De quem é a culpa? A culpa é da Comunicação! É mesmo? Repetimos o mantra que a esquerda não sabe usar os meios digitais, não sabe se comunicar. Não sabe ou não se insere no perfil para lidar com essas dinâmicas? Estamos testemunhando a penetração massiva das tecnologias de informação na totalidade das esferas das atividades humanas e nas diversas instituições que articulam a ordem social contemporânea.  É um processo de transformação material da cultura em que – através da digitalização generalizada de suportes– toda uma série de tecnologias analógicas e procedimentos diversos que até recentemente encontrávamos separadamente foram integrados num único sistema numérico, justapostos ou entrelaçados. Não tem volta, vai evoluir muito e rapidamente. Mas, a proliferação exponencial das tecnologias digitais não pode ser observada como a mera “invenção e disseminação social de objetos técnicos que precipitam mecanicamente uma série de mudanças na forma como uma sociedade se organiza e se comunica” (Guimerá, Barcelona, 2018). A tecnologia desenvolve-se sempre dentro de uma ordem social específica, nunca fora dela, e é, consequentemente, enganoso atribuir-lhe um estatuto externo e falsamente especializado.  Pensando assim, devemos ter em conta a estreita ligação que existe entre o surgimento das comunicações digitais e uma ordem social em que boa parte das instituições tradicionais estão enfraquecidos. Num contexto em que as relações sociais são atomizadas, o trabalho torna-se temporário e a mobilidade das pessoas generaliza-se, um dispositivo sociotécnico omnipresente, bidirecional e personalizado parece estar em condições de rearticular e unir um ambiente instável e fragmentado.  A comunicação digital não só cobre as necessidades de orientação, entretenimento e informação que a população exige, mas também é capaz de proporcionar aos indivíduos uma presença constantemente atualizada no domínio público digital. Como aponta Guimerá, permite a construção discursiva de uma imagem pessoal a partir de diferentes recursos semióticos, verbais e visuais, voltada para o público, fenômeno que surge em grande parte como resposta ao problema das relações sociais e de trabalho incertas, precárias e progressivamente desterritorializadas.  É muito mais veloz, é muito mais difícil e tremendamente complexo gerir uma imagem pública e institucional nestes tempos, sobretudo quando o outro lado em disputa age de maneira perversa (e lucrativa), sediado na fabricação de mentiras e meticulosamente repetindo fórmulas de pânico moral e simplificações que vêm sendo testadas, com êxito, ao redor do planeta.  Os recursos digitais não são meras questões instrumentais, são mais uma forma cultural. No caso das plataformas sociais, cultura caracterizada pela autopublicação (a capacidade que dá aos usuários de gerar e partilhar o seu próprio conteúdo), pelo sentido de copresença (a simulação de um ambiente partilhado) e pelo fluxo de -dados (organização da informação na forma de um fluxo centralizado e permanentemente atualizado).  Reportagem minuciosa da Agência Brasil nos revela que atualmente está em curso uma nova onda de desinformação no país, impulsionada por conteúdos e notícias falsas – fake news – nas áreas de saúde, educação, atreladas aos costumes. Fórmula tão conhecida quanto eficaz.  Olhar para o fenômeno dos índices flutuantes de popularidade e atribuir a queda a um discurso, um episódio ou, como propôs colunista apressado desta província gaúcha, à obsolescência da liderança de Lula, é quase pueril. Em anos eleitorais, aumenta consideravelmente a produção de desinformação, como  atesta a jornalista e pesquisadora Magali Cunha, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), do Rio de Janeiro. Magali, diz na matéria da Agência Brasil: “Os anos de 2018, 2020 e 2022 foram muito intensos com desinformação nos ambientes digitais. Já entre 2019 e 2021, houve deliberadamente uma política de desinformar, promovida pelo governo [do então presidente Jair] Bolsonaro. Mas desde outubro do ano passado, é cada vez mais alta a intensidade e quantidade de notícias falsas”, constata Magali. Outro craque nesse campo de estudos e ações, João Brant, Secretário de Políticas Digitais da Secom, fez um fio no X que mostra muito bem o tamanho do problema e a corrida para atuar sobre ele. Brant reitera que “o problema da desinformação é grave, não se resolve com soluções miraculosas. É preciso combinar ações de curto e longo prazo, combinar reações imediatas com nova legislação, fazer articulação internacional”. Nesse sentido, Brant mostra o panorama do que o governo vem fazendo, investindo em termos de comunicação estratégica (publicando desmentidos, por exemplo), transparência (com o ComunicaBr que reúne todas as informações estratégicas sobre as políticas do Governo Federal em todos os estados e municípios), articulação com AGU e Secretaria Nacional do Consumidor, debate de nova legislação, regras de investimento publicitário, fortalecimento da Rede Nacional de Comunicação Pública, fomento á comunicação popular e Estratégia Brasileira de Educação Midiática, entre outras ações. É muita coisa. Posso concordar que talvez falte uma estratégia de Comunicação que integre tudo isso, defina públicos, linguagens e plataformas com maior clareza e propósito. Entendo que há um certo vazio político na definição de prioridade e precisão discursiva. Mas agir com razoabilidade, republicanismo e ética é sempre mais difícil e mais custoso do que semear mentiras nos subterrâneos. O ecossistema de desinformação, como diz a matéria da Agência Brasil,  é retroalimentado por um circuito onde as fake news trafegam e ganham cada vez mais espaço, sem que as pessoas percebam. Talvez o tempo do Lula tenha passado e ele não seja de fato adestrado em comunicação digital, mas seu discurso humanista permanece como oxigênio nestes tempos asfixiados pelo fascismo atrevido e as guerras hipócritas.  Não é possível acusar esse democrata, como se flertasse com o autoritarismo, porque supostamente é amigo de ditadores. É um insulto reducionista, grosseiro e falso. Olhemos ao redor, vamos perceber um mundo assediado pela desigualdade, pela violência, pela destruição da natureza e das esperanças.  Confundir posições é outra tática desprezível. Escancarar a crueldade do governo extremista de Israel não significa ser defensor inocente do Hamas. São coisas distintas e quem formula essa acusação sabe bem disso, apenas falseia intenções para ocultar a própria posição inconfessável. As necessidades sociais novas e prementes podem ser cobertas de diferentes formas e a evolução das diferentes plataformas digitais com suas diversas configurações, reconfigurações e fusões de modelos, por vezes antagónicos, nos dão a dimensão da mudança que padecemos. Mas algo não muda. O olhar para o ser humano com compaixão, a vontade de cessar a fome, a entrega permanente para quem mais precisa, essa não sai de moda, esse sonho não se apaga. Sim, Lula acredita ser o cara, e neste mundo de estúpidos, ele é mesmo. *Doutora em comunicação e informação, jornalista, pesquisadora e professora universitária. Foto do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva no lançamento do plano Juventude Negra Viva, no Ginásio Regional da cidade satélite de Ceilândia: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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A Petrobras e a sanha do financismo

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A Petrobras e a sanha do financismo
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De PAULO KLIASS* A voracidade do capital financeiro é um fenômeno patológico que tem causado prejuízos muito graves para o conjunto da sociedade brasileira. Há décadas que a ambiente econômico em nossas terras é amplamente conhecido no universo da gestão de patrimônio e fortunas como sendo o paraíso do financismo global. Durante longos períodos o Brasil ocupou a primeira posição dentre as nações que ofereciam a maior taxa de juros do planeta. Esse trágico atributo guardava uma relação direta com a definição dos patamares da taxa de juros oficial, a SELIC. O órgão da autoridade monetária sempre respondeu muito mais aos interesses do grande capital associada às finanças e menos a qualquer projeto de retomada de um projeto de desenvolvimento econômico e social. Afinal, com o custo financeiro na estratosfera, qualquer tipo de empreendimento produtivo, ampliação da capacidade operacional ou atividade no setor real ficam bastante prejudicados. Ora, como a taxa referencial de juros opera como o patamar mínimo para qualquer tipo de cálculo de rentabilidade, o fato é que a sociedade brasileira acabou como que “naturalizando” esse absurdo financista. Aliás, essa capacidade que temos de nos acostumarmos como coletivo social a situações disfuncionais, para dizer o mínimo, se manifestou também no período de taxas de inflação elevadas. A sociedade internalizava os distintos ciclos de crescimento acelerado de preços e tudo se passava como se aqueles patamares fossem considerados “normais”. Porém, os setores do topo de nossa pirâmide da desigualdade econômica e social sempre conseguiam se defender da perda de poder aquisitivo da moeda. Foram necessárias várias tentativas de plano de estabilização monetária, com criação de novas moedas, para que finalmente o Plano Real lograsse êxito em 1994. Capital especulativo sempre quer mais Pois, agora, ao longo dos últimos dias, a turma do financismo volta ao ataque em defesa de seus interesses rentistas e parasitários. Trata-se da tentativa de desqualificar o governo Lula e a equipe do Ministério das Minas e Energia por conta da recente decisão envolvendo a distribuição de lucros e dividendos da Petrobras. A nossa maior empresa estatal tem sido utilizada ao longo dos últimos anos para direcionar vultosos recursos para os seus acionistas. A tabela abaixo nos oferece os dados relativos à distribuição desse tipo de valores efetuados ao último triênio: [caption id="attachment_14283" align="aligncenter" width="366"] Petrobras - Distribuição Lucros e Dividendos (Fonte: Petrobras)[/caption] Ora, não satisfeitos com essa quantidade enorme de recursos públicos distribuídos para os detentores de títulos da empresa durante os últimos 3 anos, os porta vozes do financismo avançam sobre uma outra parcela que seria distribuída também a essa conta. Trata-se de “lucros e dividendos extraordinários”. Ocorre que, exatamente pela característica de não ser uma remuneração “ordinária”, o Conselho houve por bem não promover a distribuição imediata dos valores. Eles ficaram aprovisionados em uma conta interna da Petrobrás, para posterior decisão a esse respeito. Pois essa suposta “frustração” de expectativas dos acionistas levou a que os grandes grupos de investidores do capital privado orquestrassem uma chantagem imensa sobre a empresa, provocando uma queda artificial e especulativa da cotação dos papéis no pregão da bolsa. E as manchetes e as telinhas estampavam que a empresa havia sofrido uma perda patrimonial de x bilhões de reais em algumas poucas horas. A responsabilidade, obviamente, aos olhos desse pessoal, seria creditada ao Presidente Lula por sua visão estatista, intervencionista, antimercado e blábláblá. O pequeno “detalhe” é que ninguém esclareceu aos leitores que a baixa especulativa em um único dia seria restabelecida pela alta na cotação das ações no pregão da Bolsa no dia seguinte. E vida que segue. Para esse pessoal não interessa lembrar que, desde o primeiro dia do terceiro mandato do Presidente Lula até os dias de hoje, as ações da Petrobras na Bolsa passaram por uma valorização superior a 100%. Esse tipo de ganho, que não tem paralelo com nenhuma outra grande petroleira do mercado internacional, representa uma rentabilidade que não se encontra em nenhum outro tipo de atividade econômica em nosso País para o período considerado. A linha do gráfico se inicia com o valor de R$ 17,90 e termina em R$ 36,40. [caption id="attachment_14284" align="aligncenter" width="658"] Evolução da cotação das ações da Petrobras na Bolsa – 01/01/23 a 14/03/24 (Fonte: B3)[/caption] A Petrobras é uma empresa estatal e a maior parte de seu capital pertence ao governo brasileiro. Além disso, a União possui mais de 50% do total de ações com direito a voto. Assim, os investidores que optaram por adquirir títulos do grupo estavam cientes a respeito da natureza pública do grupo e da possibilidade de que, em algum momento, os ganhos fossem redirecionados para o necessário aumento de investimento e da capacidade produtiva da mesma. Essa opção é ainda mais compreensível em uma conjuntura em que o Ministério da Fazenda atua duramente pela consecução da meta de zerar o déficit primário e que o Novo Arcabouço Fiscal elaborado por Fernando Haddad impede a capitalização de empresas estatais pelo Tesouro Nacional. A austeridade fiscal impede a expansão das atividades da Petrobrás. Esse comportamento ávido e ganancioso do financismo parece mesmo não ter limites. O primeiro aspecto a ser ressaltado é que a distribuição de lucros e dividendos continua senso isenta do pagamento de imposto de renda. Uma loucura! Trata-se de uma benesse oferecida por Fernado Henrique Cardoso aos detentores de capital em 1999 e que continua valendo até os dias de hoje, sem nunca ter sido excluída. O governo foi dirigido por representantes do Partido dos Trabalhadores por mais de 15 anos e a regra não foi seque alterada. As demais fontes de drenagem de recursos públicos para o capital financeiro podem ser observadas pelo volume das despesas com pagamento de juros da dívida pública. Trata-se de um verdadeiro orçamento paralelo da União, sem nenhum controle do Congresso Nacional ou dos demais órgãos do Poder Executivo. O Banco Central registra os volumes crescentemente escandalosos a esse título. São gastos sobre os quais não existe nenhum limite, nem teto, nem contingenciamento. [caption id="attachment_14285" align="aligncenter" width="366"] Brasil - Despesas com pagamento de juros(Fonte: BC)[/caption] A chantagem levada a cabo pelos grupos associados ao financismo nacional e internacional colocam em cheque a natureza essencial da Petrobras. Ela é uma empresa estatal e, portanto, deve responder aos desejos estabelecidos pelo acionista majoritário, o governo federal. Não se trata aqui de decisões casuísticas ou marcadas por algum tipo de oportunismo. A realidade é que as dimensões da empresa afetam de maneira significativa o ambiente econômico. Exatamente por isso é que a recuperação de seus investimentos se converte em uma necessidade premente para que o Brasil reencontre o caminho do desenvolvimento social, econômico e ambiental. A choradeira dos especuladores parasitas é conhecida. Mas o governo deve ter força e firmeza necessárias para reafirmar a natureza pública da Petrobras e a confirmar a prioridade das necessidades do conjunto da sociedade na comparação com o punhado de acionistas privados ávidos por resultados no curto prazo. *Doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal. Imagem em Pixabay. Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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